O bolinho
Nasceu o bolinho, agregado a partir de um conjunto de fragmentos de massa homogeneizado por um hábil par de mãos. Conhece o mundo. Mistura-se, ainda jovem, em meio a sociedade de sujeitos bastante parecidos com ele, embora uns sobressaiam em função do tamanho avantajado, produto de falhas no sistema de criação. Os maiores, como sempre, comandam a sociedade - e são sempre os escolhidos em primeiro lugar, em especial quando estão no fim de suas vidas, encobertos por calda de chocolate ou, quando os bolinhos fazem parte de uma classe social menos abastada, por canela ou a bom e velho açucar.
O bolinho se dá conta de seu propósito de vida. Recebe o aviso olfativo dos mais velhos. O bolinho propõe, então, uma revolução. Entretanto os outros companheiros ainda não têm ideais socialistas; acreditam na mão invisível que conduz suas vidas com a mínima intervenção do estado cozido. O discurso solitário de liberdade se perde em meio ao sonho de verão dos bolinhos em geral: todos querem ficar bronzeados porque assim foram instruídos desde que passaram a residir nas travessas de vidro num sistema de grande densidade populacional.
O bolinho é conduzido para uma bandeja. A previsibilidade de seu futuro é indiscutível. Outrora, havia visto seus antigos colegas do gueto de vidro saírem da câmara quente bastante bronzeados. Sabia, o bolinho, que aquela seria a última viagem de seus companheiros de farinha e açúcar. E sabia que ali seria quase o fim: mãos e mais mãos se distribuíam vorazmente a fim de levar os bolinhos para um compartimento esquisito, atraente muitas vezes, mas que eram terrivelmente enganadores: trituravam com muita raiva, entre salivações incoerentes e efeitos sonoros do tipo "hummm". Uma tortura para os semi-pseudo canais auditivos do bolinho.
Ele, o bolinho, tinha lágrimas em alguma parte de seu corpo de bolinho. Os olhos ainda eram algo que ele vislumbrava para as futuras gerações, considerando que a revolução os tirasse daquele ciclo vicioso de morte eminente e, portanto, a evolução os conduzisse para um sistema corpóreo definido: simetria bilateral e canais digestivos e olhos e boca eram o sonho do futuro revolucionário de milhões de anos. Sonho de bolinho.
De repente o bolinho percebeu que a bandeja na qual estava inserido balançara. A mão que o fez é a mesma que o derruba. "Liberdade!" O bolinho enfim se viu capaz de sobreviver com alguns companheiros naquele então mundo desconhecido dos pisos frios de cozinhas pré-planejadas. Houve uma comoção dos pares de mãos. O bolinho conheceu o mundo dos pés. Os achou deveras semelhante ao das mãos, embora não colocasse tanta fé na capacidade produtiva desses pés sem polegares opositores.
O bolinho estava livre! Vivo! A evolução poderia enfim tornar sua espécie numa nova sociedade, numa sociedade avançada e que poderia iniciar uma dinastia nos próximos milhões de anos e..........
"Mas quem deixou esse cachorro entrar e comer esses bolinhos que caíram no chão??"