Das dádivas, das tarefas e das dores

Uma leve dor de cabeça, como se todas as falhas fossem consignadas

E, uma por uma, viessem tratando o corpo com maldade

Como se ninguém gostasse de te chamar pra conversar

Porque você fala demais, e não escuta nada do que dizem

Outra hora, numa das conversas diárias com algo que ainda não identifiquei

Falando sozinho, ao sair do quarto, ainda desesperado … sono distante

O estopim:

Ver que as coisas não mudaram, mesmo eu tendo pedido tanto

Prometi a mim mesmo, ontem, que chorar é coisa do passado

Mas me sinto ainda com os setenta anos da adolescência

Apesar do salto, e de tudo ter sido tão fácil e rápido

As cicatrizes estão amontoadas sobre um pouco de vontade que resta

Vontade essa que pra ser vista, me pede pão, água e igualação

Eu não tenho nada, que vontade vou ter?

Gosto, adoro, amo … venero as vezes que consigo me olhar

E saber que sou eu

Queria eu tratar as coisas com menos fixação

Mas se alguém me prova, eu fico triste

Mas se alguém está padecendo, eu preferiria que fosse eu

Posso gostar tanto dos outros, e de mim que vivo todo dia no mesmo corpo, mesma casa, e conheço bons e maus “amigos”, numa mesma proporção?

Acabo me tornando um ator, fingindo que viver é tão simples

Encenando que não me importo se não tenho com quem comentar que hoje eu estava bem …

Mas que da noite em diante eu sumi, eu não sabia o que fazer

Procurei olhar pro céu, e pro chão

Pelo menos não vi distância em seus infinitos

É tudo a mesma coisa, disso eu sei

Assim como sei que esses dias vão voltar

Minha melhor amiga, hoje … foi uma folha de papel

Essa mesma já antes rabiscada de “não consigo”

Falar pra quê?

Se quem diz ouvir, me oferece o seu plágio

Se o caso fosse ser indecente, eu mesmo cortaria relações com a minha alma

E não precisaria ficar acordado até agora, esperando essa tempestade passar

Gostar pra quê?

Se o que eu ofereço já não é o bastante pra nada

E por incrível que pareça, eu gosto disso aqui

Gosto de entender as minhas coisas, de saber que nunca há de entender-se completamente nada

Em quaisquer aspectos possíveis e imagináveis

Tem horas que a falta é tão grande, que enche todo o corpo

Encorpando até sorriso

Entendeste agora?

Por hora, eu estou sozinho

E as dádivas quais tantos enchem a boca e proclamam ao mundo

Podem me ser tarefas, às vezes árduas …

Às vezes impossíveis

Mas olha aí o susto de novo:

Eu ainda consigo.

Daniel Sena Pires – Das dádivas, das tarefas e das dores (20/05/2011)