O sonho

Eles se conheceram em um sonho.

A música era alta e tinha gente falando coisas impossíveis, coisas de sonhos. Eles não sabiam que estavam em um sonho e nem as pessoas que falavam as coisas impossíveis sabiam. Em sonhos as pessoas não sabem que são apenas sonhos. E não percebem que as coisas que falam são impossíveis. Não em sonhos, oras.

Então eles se conheceram em um sonho. Não era o maior sonho de todos, nem o mais colorido, nem o mais feliz, nem o mais cheiroso. Não, era só um sonho, desses que se sonha em uma quarta-feira à noite. Desses que a gente não lembra que sonhou porque, aparentemente, não foi importante. As coisas impossíveis não são importantes fora dos sonhos (e é por saber disso que elas não saem deles). O sonho não seria lembrado se não fosse à música.

Ela estava sentada, em um canto qualquer do sonho, bebendo Guaraná. Ele não estava sentado. Ele saía do banheiro quando a viu pela primeira vez. Mas havia um milhão de garotas mais bonitas do que ela e em sonhos garotas que ficam sentadas bebendo Guaraná nunca chamam muito a atenção. Não, ele não a percebeu. E nem ela o percebeu. Eles não se viram, na verdade. Talvez o DJ tenha reparado na química, nos hormônios ou no cheiro do perfume dela. Talvez o DJ tenha percebido, mas isso também não é certo. Nada costuma ser muito certo em sonhos. Não nos sonhos dele, que bebia Tequila e tinha um rosto quadrado.

Só que a Dona da Pista resolveu levantar. É. Ela era amiga da Dona da Pista e tocou a música preferida da Dona, então elas foram dançar. (Talvez por causa dessa música é que o DJ tenha reparado.) E quando elas começaram a dançar, ela o viu. Mas ele já a tinha visto primeira e, apesar da Tequila, teve a certeza de que a conhecia de algum lugar. Porque quando bebemos, mesmo em sonhos, gostamos de conhecer todos de todos os outros sonhos (mesmo dos pesadelos) ou da vida (ir) real ou de qualquer outra dimensão. Nós sempre gostamos de conhecer outras pessoas de outros lugares. Não importa de onde e nem quem são as pessoas. Temos de conhecê-las.

Dançando, junto com a Dona da Pista, ela olhou pra ele algumas (poucas) vezes. Porque ela não achou que o conhecia e, apesar do olhar tímido, ele não era muito mais bonito do que os outros. Os outros tinham um certo charme, um certo impedimento que ele não tinha. Ele era tremendamente disponível e disponibilidade não era uma coisa interessante para ela. Não em sonhos. Sonhos são para as coisas impossíveis; as disponíveis que fiquem com o mundo em preto e branco.

Mas o olhar dele era infalível. E ela começou a ficar viciada nos olhos dele, precisava olhá-los de dez em dez segundos. O vício piorou de uma forma tão avassaladora que em minutos ela já não conseguia mais desviar os seus olhos rosas dos dele. (Sim, em sonhos os olhos podem ser coloridos.) Os olhos dele estavam envolvidos por um líquido invisível que viciava as meninas de olhos rosas. Era oficial: ela estava viciada.

Então tudo começou a girar e ela precisou apoiar-se na parede e a Dona da Pista não percebeu. A Dona da Pista preferia dançar a ajudar ou a namorar ou a ver líquidos invisíveis. Até porque ela era a Dona da Pista e as donas de pistas precisam cuidar de suas pistas de dança, para não perdê-las – há mais pessoas do que você pode imaginar querendo pistas de dança. E ele percebeu, apesar da Tequila e do mundo girando, apesar do líquido invisível que embaçava um pouco a sua visão. Ele percebeu que ela não se sentia bem. Achou que o líquido poderia fazer estragos, então fechou os olhos, andou até o lado dela, encostou na parede e disse:

- Me dá um beijo que o enjôo passa.

Ela não acreditou, apesar do vício, apesar do mundo girando, apesar da Dona da Pista não vir ajudá-la. Ela não acreditou, mesmo estando em um sonho em que as coisas são reais. Ela não entendeu que o enjôo era realmente culpa dele. Não. Ela sorriu e esperou. Pelo beijo, óbvio, porque meninos sempre beijam antes. Mesmo em sonhos.

O cheiro do lugar era forte demais, deixava qualquer um real. Era cheiro de cigarro e cheiro de incenso, era cheiro de lágrimas e cheiro de sorrisos, era um cheiro que não se dissolvia, um cheiro que não combinava com oxigênio, um cheiro que viciava e que deixava o ar laranja, um cheiro de cores fortes. Ela não gostava mais do cheiro quando finalmente ele a beijou. Quando finalmente ela teve a certeza que o enjôo iria embora (junto com o cheiro), a música passou por eles. A tal música.

E quando os lábios dele já estavam há muito tempo brincando com os dela e quando a língua dele já era parte da boca dela e quando o gosto de Tequila já corria pelas veias do lado direito. Foi quando tudo isso aconteceu que a música foi embora. As músicas nunca iam embora sozinhas naquele lugar. As músicas misturavam-se umas com as outras e abraçavam os cheiros e diziam tchaus demorados. As músicas gostavam de beijos lá, mas essa, mesmo sendo a tal música, teve que ir embora.

O beijo acabou subitamente.

Ela abriu os olhos, assustada.

Acordara.

Ele abriu os olhos, assustado.

Acordara.

Mas os olhos rosas dela entravam dentro dos olhos dele, deixando-o sem direção.

Não fora um sonho.

A música ainda estava tocando (e alto).