Uma reflexão à cerca de Deus e das coisas

Solicito que considerem o seguinte enunciado:

“E deus criou o homem a sua imagem e semelhança”

Faz-se aqui outra distinção extra-textual. Minha formação limita-se aos estudos da linguagem, porém aventuro-me, também, no âmbito da filosofia, contudo não sou ávido leitor de autores clássicos que, provavelmente, pensaram estas reflexões milênios antes de mim. Entretanto, isso não impede que eu discorra sobre tais percepções de Deus.

No enunciado proposto possuímos duas características em relação a Deus: a imagem e a semelhança. A “imagem” pode ser interpretada como a fisiologia humana, todo um conjunto de características anatômicas da espécie homo sapiens sapiens que nos distinguem das outras espécies. Na proposição pressupõe-se que Deus, apesar de nunca ter sido visto por homem algum, possui características físicas humanas, braços, pernas, cabeça, vísceras, bem como todas as necessidades de manutenção que esse sistema natural exige.

O outro elemento do enunciado é a “semelhança”. Recorreremos, então, ao dicionário Aurélio quanto a significação de semelhança. Segundo HOLLANDA (2009):

Substantivo feminino.

1. Qualidade de semelhante.

2. Relação entre seres, coisas ou ideias que apresentam entre si elementos

conformes, além daqueles comuns à espécie; parecença, analogia.

3. Aspecto, aparência.

4. Confronto, comparação, paralelo. [Sin. ger.: similitude.] (HOLLANDA, 2009)

Se, por um lado, a imagem está associada aos aspectos fisiológicos, a semelhança, por sua vez, pode ser interpretada como as características inerentes a psique humana. A semelhança surge como o caráter divino análogo ao caráter humano. Estabelecido, assim, esse preâmbulo, descobrimos que a raça humana, criada por Deus a sua imagem e semelhança, é detentora de índole e aparência divina.

Porém, considerando a proposição como verdadeira, pesam sobre a afirmação da nossa semelhança e imagem com Deus alguns dilemas religiosos e morais. Se toda a humanidade existente no planeta Terra é “a imagem e semelhança de Deus”, não se pode excluir, também, os ladrões, estupradores, estelionatários, assassinos e toda sorte de tipos afins de criminosos. Seriam eles, também, detentores da “semelhança” divina?

A maldade seria um gene herdado de Deus?

Mas a resposta para a pergunta não é o real objetivo deste texto.

Nossa semelhança, acredito, está em nosso potencial criador. Deus, como arquiteto de tudo que é existente, criou o universo a sua vontade. Ele, então, é a instância criadora primária. O mundo, em sua forma bruta, ausente absoluto de qualquer vida, representa a criação divina. Consideram-se “coisas”, apenas, aquelas surgidas pela vontade divina. Uma pedra, a terra, a água de uma nascente, a areia, uma montanha são as “coisas”, produtos da criação divina. As “coisas” por excelência.

A vida, principalmente nós, somos um tipo especial de “coisa”. Detemos o poder criador também. Eis a

nossa “semelhança” com Deus. A criação, a invenção, a manipulação da realidade. Contudo, tal criação perde o status de criação primária. O homem, assim, representa a instância criadora secundária. A partir das “coisas” puras o homem cria as “subcoisas”, produto da manipulação da realidade criada por Deus. Deus criou a “pedra”, a “coisa” por excelência, e o Homem manipulou essa realidade para criar suas ferramentas. O produto final dessa manipulação resulta na “subcoisa” martelo, cutelo, ou qualquer ferramenta possível de ser confeccionada a partir da pedra. A pedra perde sua essência de “coisa” para ganhar a condição de “subcoisa”, efeito da criação humana.

A manufatura, em geral, é o poder criador absoluto do homem. A camponesa que confecciona o cesto a partir das folhas secas, o arqueiro que produz as flechas com a madeira, o ferreiro que cria a armadura e o escudo com o bronze e o ferro, o ourives que manipula a pedra preciosa até chegar à jóia. Todos são criadores. Herdaram o talento criador de Deus, criador de tudo. São criadores, porém, das “subcoisas” a partir da manipulação das “coisas”.

Mas as subcoisas são raras na modernidade. O homem “privatizou” seu potencial criador às maquinas, criando-as. Nota-se, contudo, que, com essa afirmação, o texto não adere ao Ludismo, filosofia de repulsa às maquinas. Na ânsia da criação em larga escala para preencher o mundo com suas “subcoisas”, o homem alienado (ou Sapines Demens na filosofia de Edgar Morin) perdeu sua principal semelhança com Deus e legou às máquinas o poder de criar. Os objetos do mundo, o qual fazemos tanto uso em nossa sobrevivência diária, perderam a condição de “subcoisa”. A máquina, assim, é a instância criadora terciária. A partir delas, tem-se a origem das “metacoisas”, ou seja, as coisas criadas pelas coisas. O inanimado gerando o inanimado.

Dentro desse pensamento, toda a criação divina surge como, metaforicamente, uma grande insdústria. Deus fornece a matéria prima, a natureza selvagem, as “coisas”. O homem manipula as “coisas” e cria, em moderada escala, as “subcoisas” que são as máquinas. Estas, por sua vez, geram em larga escala as “metacoisas”, menor unidade de criação do mundo físico. E o mundo se preenche de criatura e criadores, coisas, subcoisas e metacoisas.

Se a capacidade de criar é nosso maior elo com o Criador, legar essa capacidade às máquinas é, por sua vez, abdicar a imagem e semelhança com Deus? Entretanto, gerenciar o trabalho das máquinas, nossa própria criação, responsabilizar-se por seu correto funcionamento e manutenção não seria, de alguma forma, agir como Deus deveria agir? Ora, quem cria algo tem responsabilidades sobre o que cria. Gerar a existência de algo no mundo é, além de uma capacidade, um contrato. Crio, porém cuido. Trata-se de um relacionamento análogo ao de pais e filhos, onde os primeiros geram os segundos e, por isso, tem responsabilidades sobre a cria.

Nossa vantagem sobre Deus é que nossa criação, as máquinas, são servas fiéis e sem qualquer rebeldia. Nós, por outro lado, detemos o livre-arbítrio. Essa característica torna-nos crias muito voláteis e violentas. É-nos dado o direito à refuta de um possível criador bem como a crença em nossas próprias teorias à cerca da criação.

Leo Ramos
Enviado por Leo Ramos em 08/04/2011
Código do texto: T2897508
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