O Dia Seguinte
Você acorda. Rola pro lado querendo morrer. Mas não morre. Sua cabeça encostou no travesseiro, à noite, pesando duas toneladas. Insulflada de contas a pagar. De dúvidas. De problemas. De lembranças. O segundo despertador toca. Mais dez minutos. Menos dez minutos. Você levanta, no terceiro despertador. Vinte minutos depois do primeiro. Você se levanta e sente um estalido no pescoço. A dor desce pela espinha e estaciona na ponta dos dedões dos pés. Você se olha no espelho. Seu rosto inchado e seus olhos minúsculos. Você lembra o porquê. Você está abatido. Você já olhou esses olhos antes. Outras vezes. Muitas vezes. Esse olhar opaco e ao mesmo tempo cheio de significados. Derrotas, perdas, decepções. Você só se reconhece quando encara essas mandalas tristonhas. O esquete acaba enquanto você os fita, calmos, serenos, velando de forma maestral o turbilhão mental que te impele a colocar o cano na boca e brincar de cachoeira de sangue; deixar o palato com a aparência de uma meia com os elásticos frouxos; pólvora nos lábios e na ponta do nariz; dentes rolando pelo chão com as raízes expostas. Você olha as lâminas de barbear ao lado da janela do banheiro. Você se imagina apertando ela no antebraço e arrastando; a suposta ardência te dá agonia. Você não presta pra isso. Pra quê você presta, afinal? Mas o pensamento de ser deus te deixa um pouco melhor. Quando tudo ficar realmente insuportável, você terá a coragem necessária pra sangrar até morrer. Expiar com sangue viscoso e quentinho a existência inútil que tem. Por enquanto, seu pescoço dói. Você dormiu de mau jeito. Você acordou de mau jeito. Pensando bem: você NASCEU de mau jeito. Não consegue olhar para os lados. Agora ande para a frente, com seu cabresto existencial. A vantagem é de não ver a derrota e o fracasso te cercando pelos lados.
Você sobe três andares de escada vinte vezes por dia.
Você respira o mesmo ar que milhares de pessoas respiram em pequenos metros quadrados.
Você diz "sim" querendo desembainhar uma faca do exército e fazer um sorriso de orelha à orelha no locutor.
Você sorri amarelo pro filho da puta efusivo querendo morrer por dentro e querendo descarregar uma calibre 12 na cara dele.
Você se debruça no parapeito do décimo andar quarenta vezes por dia, querendo mergulhar de cabeça, por mera curiosidade.
As pessoas não te notam.
Você tem dores dentro de você. Seus músculos não valem de nada. Suas palavras afiadas não valem de nada.
Você tem uma dor inenarrável carcomendo teu cérebro e teu coração.
Você não se conforma.
As lágrimas te traem no ponto de ônibus no final do dia.
Elas escorrem, dolorosas. Você não consegue suportar a perda.
Você sabe que antes NÃO TER do que- mesmo que seja parcamente -TER -e perder.
A vida só te ensina da pior forma possível.
Só te ensinou da pior forma possível.
A vida é a pior de todas as escolas.
E em casa os olhos estarão te esperando no espelho.
E o sol nascerá no dia seguinte, disposto a te humilhar.
Acostume-se.
Ou puxe o gatilho.
"Die young, stay pretty", disse o músico.
Ainda dá tempo.
Ainda há tempo...