Atividade cerebral

Acendo um cigarro. Sinto uma pontada na cabeça. Na verdade, em meu corpo. Ontem, durante a passagem do cometa, consegui vislumbrar a verdade. Agora sei, esta pontada foi no meu corpo.

Bebo um gole de cerveja, consciente de que logo estarei sonolento. É minha decisão trazer essa experiência para cá, pra dentro, onde vou me embriagar. Meu corpo fica vaporoso e eu me deleito. Preciso continuar comandando os controles, porque se eu sair de órbita, esta coisa grande vai sair enlouquecida por aí, derrubando coisas, empurrando argumentos meus fora de contexto, uma coisa louca. E o vômito.

Daqui, desta colina, consigo ver toda a cidade. Está-se apagando com o fim do dia, as primeiras luzes começam a brotar, a noite está abraçando Aruaquenga. Sinto que o corpo precisa que eu seja feliz, sinto que me pressiona por mais sensações, minha felicidade ressoando, porque precisa disso pra prosseguir. Eu, aqui dentro, o que posso fazer? Preciso deixar essa coisa feliz, preciso que tenha vitalidade e que me conduza pelos caminhos do mundo. Por isso eu bolo grandes estórias, por isso planejo algumas loucuras e estendo horas sobre horas, pra que ele se sinta entretido, jogando minhas regras e as regras dos outros que estão lá fora.

Por enquanto, estou só. Ninguém me compreende, ainda. Não estou falando com os conscientes, mas com os anuviados, então. Pensam que são toda essa estrutura, que cada parte de sua existência é o próprio ser, porque ignoram a verdade. Eu espero que apareçam, porque pode ser bastante interessante fazer as coisas em grupo, sob essa perspectiva. Por isso, acendo outro cigarro. Tenho medo do que pode acontecer com esse vai e vem de fumaça, mas relaxo, não chego nem a fumar todo, quero apenas uns tragos.

Nada temos de nos comparar por espécies, como se estes nomes pudessem sugerir uma história romantológica. O que cresce ao nosso redor, este corpo, membros, tronco, esta estrutura composta de ossos, músculos, tendões, tecidos vários, vasos e artérias, células, tudo isso é uma proteção funcional para quem realmente somos. Isto que você ouve agora é o real, provém daquilo que é de fato, essa voz criada ao bel prazer, que independe de qualquer parte do corpo para existir. Isso é você. O resto é uma armadura que se desenvolveu para tua expressão e proteção.

De modo que, lastimável é perceber que ao meu redor o que existe é o transe. Você olha, procura nos olhos algum sinal da verdade, aquela luz selvagem, e nada. O que existe é aquela urgência, aquela contenção que faz a pressão subir, os movimentos de estresse do corpo, as doenças e a inanição. Um corpo feito para explorar os confins da terra, para guiar-nos pelas experiências mais exuberantes da existência glandular, e alguns simplesmente se encostam numa parede, todos os dias, para ver o sol nascer redondo.

Tudo que temos é ambição. Somos uma massa em atividade, uma consciência frágil sob o crânio, de modo que a dor é a única coisa que nos possibilita compreender o que é uma ameaça. Quando a máquina é atacada, o sistema pode entrar em pane e expressar-se terrivelmente. Quando é inviável que haja recuperação, muitos decidem por pedir a destruição e o apagamento completo das atividades. É um pedido consciente da incapacidade de agir conforme se espera da estrutura que se desenvolve conjuntamente, embora em tempo bem mais acelerado do que gostaríamos nós.

Não fumo mais hoje. Acredito que, em breve, terei companhia. Não sei, é possível. Às vezes, sonho que estou num bar e de repente uma mulher senta e começa a conversar comigo. Nós curtimos a mesma ideia e ela sabe que está ali, lá dentro, conduzindo a máquina. Casaríamos e teríamos filhos, ensinaríamos as crianças sobre a vida e elas fariam o mesmo. Quem sabe, um dia, esta solidão fosse curada em outro qualquer. A minha é inconsolável. Vejo as pessoas passando, elas me veem sentado. Não sabem para onde vão. E eu não sei o que faço pra que parem, elas seguem, elas fecham as portas e não dormem no claro, elas assistem os programas da tevê, elas estão ali o tempo todo e não atendem ao meu chamado. Eu chamo, sim, como dá, às vezes, mas nunca deu certo. Por enquanto, solitário.

As energias da máquina estão baixas. Vou levá-la para cama, mesmo que não durma, ela precisa descansar. Amanhã, certamente, outras oportunidades de comunicação vão surgir. Esta coisa terá outra chance de se expressar.

Avati
Enviado por Avati em 11/03/2011
Reeditado em 11/03/2011
Código do texto: T2840738
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