O Escritor Zero Três
O escritor não mais se compraz com a caneta nem com o teclado nem com a folha nem com o editor de textos aberto. O escritor empreguiçou-se de seus personagens promíscuos, obscuros, falsos, sinceros, humanos demais, mais humanos que ele próprio. O escritor cansou de fumar cigarros que não fuma, suicidar sua consciência com palavras, expor seus interiores sombrios. O escritor cansou do luto dos seus desamores. O escritor cansou de ser visto com bons olhos, de receber elogios sazonais sobre seus escritos. O escritou cansou de opiniões rasteiras sobre seus escritos. O escritor cansou de descrever beldades inexistentes. Cansou de salpicar pó nórdico em belezinhas de narizes aristocráticos tão empinados quanto lanchas de corrida. Cansou de mensurar os gluteos das mulatas baianas. Cansou de tiradas sarcásticas sobre as chinesas terem na horizontal. O escritor cansou de ouvir que não tem cara de escritor. O escritor cansou de não ser escritor só por não usar óculos quadrado costeleta cachecol e ficar em esquinas de cafés da Vila Madalena lendo os clássicos da literatura imortal tentando ser o baluarte de qualquer coisa de seu universo-bolha-de-escriba-egomaníaco. O escritor cansou de granjear seu potencial em rede mundial e comer o pão que o diabo não quis amassar por ter patas delicadas demais enquanto era retuítado por abastados acéfalos analfabetos funcionais e virgens. O escritor cansou de pincelar de azul o céu, de falar do fulgor dos raios do sol, de descrever torvelinhos em lagos cristalinos em tardes outonais. O escritor cansou de ser superestimado e de ser olhado por seus affairs como um ícone, alguém que após breve silêncio poderia soltar a mais brilhante de todas as frases já ditas. O escritor cansou de ser subestimado em sua profundidade por affairs que se mostraram tão profundos quanto uma frigideira. O escritor, o escritor. O escritor que trocou a pena e o teclado por uma carteira de clientes. O escritor que embotou a capacidade de captar poesia no olhar das pessoas que hoje vende financiamento de automóveis. O escritor, uma máquina de fazer dinheiro enquanto o dinheiro feito faz mais dinheiro. O escritor, colocando notas de cem em tangas com manchas de corrimento. O escritor com uma interesseira no motel. O escritor, ser comum, herege, niilista, descontente, egocêntrico demais para o suicídio. O escritor louco aos trinta, olheiras profundas, cabelos brancos, cocaína, remédios para dormir. O escritor e a merda mole de cerveja, pústulas nas nádegas, a falência financeira. O escritor boêmio, o escritor mendigo, o escritor garroteando o pescoço e chutando o banco num quarto bolorento de hotel porco. O escritor engolindo trinta comprimidos e dando talagadas em uísque barato em seguida. O escritor sentimental. O escritor pulando da ponte. Do prédio. Comendo carvão em brasa. Dando tiro pro alto. O escritor lambendo poços de sêmen em vaginas de meretrizes. O escritor acordando dia após dia sozinho e enfrentando um dia mecânico, metálico, frio, o dia de um autômato. O escritor amargando na contemporâneidade sofredora de lobotomia televisiva, via satélite, via cabos ópticos, via crucis. É o escritor não mais se compraz com a caneta nem com o teclado nem com a folha nem com o editor de textos aberto. O escritor acreditando na má-sorte. O escritor sem sexo e sem sono. O escritor zero três.
Lobão - Das Tripas Coração