Boa noite, Janela
Às vezes acredito que o mundo lá fora não passa de um recorte previsto pela minha janela. Daqui, de onde escrevo, escuto dezenas de sons. Acho que são centenas. Não, não. Minto. São milhares. Há tantos ruídos que flutuam ao ar do despercebido. Afinal, torna-se mais fácil viver quando não escutamos e, muito menos, enxergamos tudo que pode nos fazer mal. Se assim fosse, enlouqueceríamos do dia para noite. Então, penso: Quem foi o autor da ditadura cuja sentença determina que loucura não seja saudável? Por que não palpitar o coração e os pensamentos sobre o que se passa bem aqui, no bascular da nossa face? Esforço-me um pouco mais, estico minhas pálpebras para dar chance ao globo ocular e, por fim, vejo poucos e poluentes veículos. Alguns coletivos... Outros particulares... Há aqueles mais informais, de tração animal. Inclino meu corpo, movimento minha cadeira de rodinhas quebradas, arranho por mais alguns centímetros o piso de madeira do meu quarto e chego ao vidro embaçado. E não era pela minha respiração. Creio que se tratam de observadores não observados. Na medida em que trafegam fornecem uma fiel e breve fitada ao meu vidro, e continuam o seu caminho. São centenas de veículos diariamente. Como posso prestar atenção a cada gesto? A cada rosto amargo, a cada olhar perdido, a cada raio de luz absoluto e soberano de nossas almas? São dúvidas que pairam na janela do meu quarto. Consigo ler alguns questionamentos. Poxa! São tantos idiomas... Levo tempo para traduzir palavra por palavra. A chuva surge. O vento lava. As gotas evaporam e eu recomeço a minha busca incessante pelo significado infinito da minha janela. No horizonte, vejo faróis no raiar da noite. Mais e mais veículos para observar... Está na hora de dormir... Acho que no fim é isto: tão somente pela incerteza do amanhã; é por ela que nos permitimos sonhar.