Teto

Enquanto eu sou bom em começar, você é especialista em terminar. Enquanto eu não sei por onde começar, você já sabe de antemão como será o fim. Enquanto eu tento dar um início, você já acabou comigo. Parece que o teto gira. Já se sentiu assim, sem beber? Deito aqui nesta cama de sempre e olho o teto de sempre. Ele costuma ser estático. Ele costuma ter essas manchas de umidade. Essas manchinhas negras de pernilongos que esmaguei. Mas hoje ele gira. Meio giro no sentido horário e meio giro no sentido anti-horário. O teto fica pra lá e pra cá. As manchas úmidas e as carcaças esmagadas de insetos formam uma só imagem. Hoje. Seu rosto. Mal lembrava do seu rosto. Mal reconheci sua voz. Ah, mas isso é tão piegas! Incomum! Único! Não se faz mais disso atualmente. A faixa etária para a descoberta da inutilidade do sentimento está cada vez menor; daqui algum tempo, ninguém sentirá mais nada pelo próximo. Isto não pode acontecer! "O amor é importante, porra!", já diz o lambe-lambe espalhado nesta cidade fodida. Mas a porra está mais importante do que o amor. A porra leiteira, o líquido pecaminoso, o início do fim via uretra. E se eu fecho os olhos, o teto volta a ser teto e tudo que o engloba também, quando abro os olhos novamente. E eu volto a ser eu. Volto ao completo nada. Há qualquer coisa de desesperador em se sentir assim, vazio, oco, esperando por um algo que não aparece, por um algo que a humanidade não pode oferecer com sua tecnologia, culinária, conhecimento e burrice; algo que se for concreto, no mínimo, será trazido numa bandeja pelos deuses - se é que eles existem. É impossível qualquer coisa acontecer. Então, abro os olhos para o abstrato, para a impossibilidade que preenche minhas cavidades, minhas lacunas. Abro os olhos pro meio-giro-horário e pro meio-giro-anti-horário porque eu preciso de uma dose de vida, preciso de uma dose de sentimento, preciso de uma dose de crença, de esperança, de amor. Eu preciso de você. Rosto misto de pasta de mosquito e umidade que se tornou. Tão assim surreal debelando meus anseios, tão eficaz quanto um tarja preta, tão eficaz quanto uma garrafa de cachaça. Não quero fechar os olhos nunca mais, não quero fechar os olhos nunca mais, não quero fechar os olhos nunca mais, não quero fechar os olhos nunca mais. Está ao meu alcance agora, como nunca antes esteve. É a minha chance, eu sei. É só eu não desprender os olhos dessa maluquice que paira perto da lâmpada. É só eu despender um repetido mantra que posso tê-la comigo. Não quero fechar os olhos nunca mais, não quero fechar os olhos nunca mais, não quero fechar os olhos nunca mais. Agora giros completos no sentido horário. Redemoinhos de ponta-cabeça. Seu rosto tão vívido como da última vez que o vi. Tão cansado, também! Profundas olheiras. Um ricto matreiro. As sobrancelhas arqueadas, ah!, leito do pecado! Meu perpétuo deleite, contemplá-las a me esnobar. Posso tocá-la. Posso sentir sua pele. Sua tez, maldita e pálida tez que me enlaçou os sentidos, que me embotou os sentidos - que me deu um sentido. Sinto certa sucção. O redemoinho gira mais rápido. Suas mãos. Suas mãos limosas e cadavéricas segurando nas minhas. Nossos dedos entrelaçados. Você olhando nos meus olhos. O sorriso, o sorriso formando-se nesses lábios, os mais embriagadores lábios que qualquer desavisado de alma sortuda pôde um dia tocar. Tive uma alma sortuda! E um corpo que sofreu as conseqüências e que agora é tragado pelo seu espectro teto acima. Falta pouco. Só não posso fechar os olhos, só não posso fechar os olhos. Amplexo. Ah, esse abraço. Esse mesmo abraço que fez meu coração palpitar em certa esquina numa Primavera traiçoeira. Prometi, na ocasião, não me desgarrar nunca mais de seus braços. Promessa vã. Agora, posso cumpri-la. É só não abrir os olhos, é só não abrir os olhos. Sou sugado por você. Entro no seu mundo. Pedaços de almas vagando, uivos horripilantes, ventos gélidos, vampiros, violões gigantes voadores, macacos suicidas. Você, você, você, você. Como naquela esquina, naquela Primavera, dentro daquele abraço inesperado, tudo parou de se mover, a Terra parou e você veio, avançou, veio na direção dos meus lábios. Fechei os olhos para beijá-la. E o teto estático, como sempre foi.

10/02/2011 05:39h

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 13/02/2011
Código do texto: T2789338
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