LEGALIDADE KANTIANA
LEGALIDADE KANTIANA
Pedro André Pires de Almeida
Pensar sobre direito ou legalidade é pensar em uma gama de fatores, doutrinas e leis que comportam este vasto e fascinante assunto que é de tamanha importância para as comunidades e sociedades como um todo.
Ao falar-se em direito geralmente e faz-se uma ligação deste assunto a leis, estatutos, sanções, cláusulas, artigos, capítulos, penalidades, deveres, direitos e acima de tudo, justiça. Além disto, se concebe o direito também como um sistema de normas de conduta imposto por um conjunto de instituições para regular as relações sociais, o que os juristas chamam de juriscidade (grifo nosso). De fato estes fazem parte e compõem esta grande disciplina que sem dúvida influenciou e ainda influencia a vida de inúmeras pessoas no mundo inteiro.
No direito e quando dele é falado, geralmente volta-se o pensamento àquilo que é reto, justo, integro e honrado. Além disto, o direito é concebido também como um conjunto de leis ou regras que regem as relações entre os homens, e, quaisquer que sejam estes conceitos, o direito é essencial para vida em sociedade para definir direitos e obrigações entre as pessoas e resolver os conflitos de interesses. A ciência que estuda esta sistematicidade de regras chama-se jurisprudência. E, esta possui o encargo de analisar, estudar e julgar exatamente a “Faculdade legal de praticar ou deixar de praticar um ato” (KURY. 2001.p.256) isto é, o resultado de determinados atos ou ações que se realmente estão ou não conforme à lei (grifo nosso).
Na ética há uma exigência de cumprir-se uma responsabilidade ou então um contrato assumido mesmo que a outra parte não lhe coagisse a cumprir, na preposição da lei de que os compromissos assumidos tão somente deverão ser cumpridos, reside especificamente no direito.
Contudo, as relações entre o Direito e a Moral constituem dos mais importantes assuntos de que se ocupa a Filosofia do Direito. Ressalta-se, que a Filosofia do Direito não é uma disciplina jurídica ao lado de outras; não é sequer rigorosamente uma disciplina jurídica. É um ramo da Filosofia que se ocupa do Direito, ou seja, é uma transposição do jurídico para o campo daquelas interrogações fundamentais que se impõem a respeito de tudo o que possa ser objeto do pensamento, numa palavra, para o campo das preocupações habituais da Filosofia.
Em Kant encontra-se sua filosofia do direito na Metafísica dos Costumes, dividida, por sua vez, em Doutrina do Direito e Doutrina da Virtude .A legislação jurídica apenas leva em consideração a conformidade com a lei, isto é, a lei deve ser cumprida independente de móvel que o faz realizar ou impulso sensível que lhe estimula a agir. Então, quando um indivíduo age de determinada maneira a conformar-se à lei, também por interesse e um fim visado, esta só poderá ser então, logicamente uma ação legal. Eis aí a diferença entre moralidade e legalidade conforme assinala Kant (KANT. 2003.p.63)
Enquanto dirigidas meramente a ações externas e à sua conformidade à lei, são chamadas de leis jurídicas: porém, se adicionalmente requerem que elas próprias (as leis) sejam os fundamentos determinantes das ações, são leis éticas e, então, diz-se que a conformidade com as leis jurídicas é a legalidade de uma ação, e a conformidade com as leis éticas é sua moralidade.
Subentende-se conforme a citação acima, que a motivação de uma ação conforme a esse dever sucessivamente uma ação moral ou jurídica são diferentes, pois tal ação somente será moral se for cumprida tão somente por respeito ao dever, mas apenas legal se for cumprida por alguma inclinação ou cálculo. Em outras palavras, o direito diferencia-se, neste sentido da moral não por apresentar uma legislação de caráter “diferente” como por exemplo, hipotética ou heterônoma, mas simplesmente por admitir possibilidade ou mesmo exigir necessidade um móbil diferente do respeito pela lei.Assim, no que tange a ação legal segue-se:
Os deveres de acordo com a legislação jurídica, podem ser somente deveres externos, visto que essa legislação não requer a idéia desse dever que é interna, seja ela mesma o fundamento determinante da escolha do agente; e posto que necessita ainda de um motivo que se ajuste a lei,só pode relacionar motivos externos a si.(KANT.2003.p.72)
Na moral, cumprir uma promessa feita é um dever, isto é, deve-se necessariamente cumpri-la por respeito ao dever e por ser um dever. Então, neste sentido a promessa será cumprida. Mas conforme a lei, a promessa será apenas cumprida por algum interesse ou por medo da punição externa, que exige o cumprimento por coação, através de acordo firmado ou contrato juridicamente estabelecido. Nas palavras de Norberto Bobbio (2000.p.93):
A legislação jurídica não pede ao cidadão que mantenha as promessas por respeito ao dever; pede-lhe manter as promessas, e nada mais, e o ato é aceito como juridicamente perfeito ainda que o motivo pelo qual foi cumprido tenha sido meramente utilitário, como interesse de não ser, por sua vez, decepcionado, nas próprias expectativas, por uma promessa descumprida, ou pelo medo da sanção etc.
Conforme o capitulo anterior,fora visto que na moralidade a ação é cumprida por dever, não por inclinação, mas por puro respeito ao dever. Todavia, na legalidade as ações dos indivíduos podem ser cumpridas somente em conformidade ao dever, podendo ser segundo alguma inclinação, pretensão, ou interesse próprio.
A legislação jurídica neste sentido é a que aceita simplesmente a conformidade da ação para com a lei, e não interessa nesta hora as inclinações ou interesses que lhe determinaram.
A legislação que não inclui o móbil na lei e, portanto, admite também outro móbil distinto da idéia do dever é jurídica. Assim, a mera concordância ou discrepância de uma ação com a lei, sem levar em conta os móbiles da mesma, chama-se legalidade (conformidade com a lei). (TAVARES. 2007.p.86-87).
Logo, quando uma pessoa atua de determinada maneira para conformar-se a lei, mas ao mesmo tempo não sendo esta sua intenção, mas por coação, ou então age por que lhe é de seu interesse e corresponde a suas inclinações, então sua a ação mesmo assim é legal, pois esta conforme a lei (Recht). Por isto, lei jurídica não exige uma ação por dever, visto que ela não leva em consideração os princípios internos do indivíduo que irá executá-lo, mas apenas exige externamente uma ação em conformidade com a lei jurídica e por isto é in foro externo e não in foro interno. Contudo, isto fica claro que legalidade é a simples conformidade de uma ação com a lei, sem tomar em consideração seus motivos.
3.1 Direito
O direito tem como finalidade estabelecer normas e regras que venham a nortear a ordem em determinada comunidade, e assim possui leis que restringem e impõem limites as ações dos indivíduos. Com isto ele exercerá sobre estes coerções se porventura violarem e infringirem a lei estabelecida. Em outras palavras, o direito é um conjunto de regras que regem as relações entre os homens, através de leis que os coage a agirem de forma reta e justa, caso contrário, há punições segundo estas mesmas leis. Pois o direito refere-se logicamente a relação externa de uma pessoa para com outra, no que as suas ações possam influenciar-se de forma recíproca. Além disto, este conceito significa também a relação do arbítrio de um com o arbítrio de outro. Logo destaca Flamarion Leite (1996.p.69)
O direito é para Kant o complexo das condições formais que permitem a coexistência dos arbítrios dos indivíduos particularmente considerados, determinando a esfera de liberdade dos indivíduos e coordenando-a de tal modo que a liberdade externa de todos possa coexistir segundo uma lei que seja universal.
Assim o conceito de direito está assentado sobre a exterioridade e não na interioridade da moral, pois o que está valendo neste momento é a relação racional e formal entre os indivíduos. E esta formalidade refere-se à coexistência dos arbítrios, sem considerar os conteúdos sensíveis.
Logo, percebe-se que o importante não é a indagação se a ação é realizada por dever ou não, mas o importante é a forma da relação exterior.
O direito está, impreterivelmente ligado a leis, e o seu conceito quando identificado à obrigação não passa de uma relação externa de uma determinada pessoa para com outra;
O conceito de direito, enquanto vinculado a uma obrigação a este correspondente (isto é, o conceito moral de direito) tem a ver, em primeiro lugar, somente com a relação externa e, na verdade, prática de uma pessoa com outra, na medida em que suas ações, como fatos, possam ter influencia (direta ou indireta) entre si. (KANT. 2003. p76)
Isto é claro, levando-se em consideração obviamente as ações destes indivíduos entre si e escolhas que estarão também se referindo à liberdade dos outros.
O direito é, portanto, a soma das condições sob as quais a escolha de alguém pode ser unida à escolha de outrem de acordo com uma lei universal de liberdade (KANT. 2003.p.77)
Kant volta-se a uma “nova” maneira de tratar o direito, criticando a tautologia lógica e o seu dogmatismo ontológico, além também de alguns exageros de certos empíricos que aconteceram anterior a ele. O que na verdade Kant tem em mente é o direito na sua concepção geral, como sendo uma restrição da liberdade de cada indivíduo para que então se harmonize com a liberdade dos demais indivíduos. Por sua vez este pensador na sua Metafísica dos Costumes distinguiu de maneira clara o direito natural do direito positivo . No entanto, que a teoria do direito seria o conjunto de leis que são suscetíveis de uma legislação exterior e ao passo que esta legislação evidencia-se, vai ficando claro a existência da ciência do direito positivo.
Este direito em si é aquilo que prescreve leis de determinado local/lugar e tempo. Assim, esta noção de direito é voltada a uma obrigação referente à relação exterior de uma determinada pessoa para com outras, onde suas ações de fato podem ter certa influência sobre outras ações. No entanto, esta noção evidencia sem dúvida a relação do arbítrio de quem age para com outro.
Neste sentido, ao analisar este e outros fatores percebe-se que o direito tem na verdade por objeto aquilo que se reporta aos atos exteriores, isto é, o que se dá é tão somente a exigência dos princípios exteriores de determinação para o arbítrio, não levando em conta as intenções morais.
Todo direito é uma relação entre seres humanos (só o ser humano se envolve numa relação prática), na medida em que tal relação se mostre como ações que como fato, possam exercer influência, num noutro, direta ou indiretamente. (SALGADO. 1995.p.270).
Porém o direito está fundado na consciência da obrigação de todos segundo a lei, pois fica subentendido que tanto o direito quanto a faculdade de obrigar seria a mesma coisa. Nesta linha Kant (2003.p.78) explicita o exemplo do credor em que:
Assim, quando se diz que um credor dispõe de um direito de exigir de seu devedor que pague sua divida,isto não significa que ele pode lembrar o devedor que sua razão ela mesma o coloca na obrigação de fazer isso; significa,ao contrário,que a coerção que constrange a todos a pagar suas dividas pode coexistir com a liberdade de todos, inclusive a dos devedores, de acordo com uma lei externa universal. Direito e competência de empregar coerção, portanto, significam uma e única coisa.
É a ética que exige que os indivíduos cumpra um compromisso assumido em um contrato, mesmo que a outra parte não pudesse coagi-los a tanto, mas ela assume a lei (pacta sunt servanda) e o dever correspondente como dados pelo direito.
Mas, esta obrigação no âmbito jurídico é igual, mutua e universal, ou seja, em realidade seria uma regra geral para todos.
Kant como leitor de Rousseau absorveu alguns de seus conceitos, em que para ele, o homem deverá sair do seu estado natural em que age somente com o objetivo de sua satisfação pessoal de acordo com seus próprios caprichos e então convencionar com todos os demais em submeter-se a uma legislação exterior, publicamente acordada. E desta forma, os seres racionais e civis integrante de uma sociedade estarão limitados a uma lei que estabelecerá padrões a serem respeitadas para que o direito de um não prejudique o direito de outro. Neste sentido ressalta Kant (2003.p.77):
Se, então, minha condição pode geralmente coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal, todo aquele que obstaculizar minha ação ou minha condição me produz injustiça, pois este obstáculo não pode coexistir como uma liberdade de acordo com uma lei universal.
Assim, somente ações externas, com conseqüências externas, são relevantes, quando se trata simplesmente de estabelecer um princípio universal da coexistência dos arbítrios. É obvio que o direito é um conjunto de normas e diretrizes que garantirão o direito à liberdade até certo ponto, e os deveres de todos que tem de ser seguidos, para que assim os indivíduos na condição de pertencentes a um Estado Civil vivam em ordem em suas determinadas comunidades ou sociedades, onde a liberdade de um não interfira na do outro.
Não obstante Joaquim Salgado (1995. P.207) analisando o direito em Kant faz a seguinte ressalva:
Interessa a Kant conceituar mais de perto o direito que aparece na sociedade civil. O direito, ao passar para a sociedade civil, aparece com a forma de um direito guarnecido de coação.
Logo, as normas estabelecidas pelo direito coagem os indivíduos a obedecê-las para que a ordem seja mantida, não são atos morais subjetivos que são exigidos, mas tão somente que a lei seja obedecida independente do sentimento interno do individuo. Pois, a legislação jurídica exige o cumprimento dos deveres somente por intermédio da coação e não por respeito à lei, mas somente conforme ao dever. Desde que “minha” ação seja justa, quer dizer, tal que permite a coexistência de meu arbítrio com o arbítrio de todos os outros, não impedindo, assim, o livre exercício dos demais arbítrios, “estou” plenamente autorizado pela lei jurídica a realizá-la. Noutras palavras, a lei do direito somente quer que os indivíduos ajam conforme ela exige, logo, há sim uma coação que é externa. Assim, nas palavras de Kant (2003. P.78).
“Pode-se localizar o conceito de direito diretamente na possibilidade de vincular coerção recíproca universal com a liberdade de todos, isto é tal como o direito geralmente tem como seu objeto somente o que é externo nas ações, o direito estrito, a sabe aquele que não está combinado com nada ético.
Isto, pois, se da pelo fato de o direito (legalidade) não levar em conta os princípios subjetivos que estimulam o agente (indivíduo) a praticar determinada ação que viole a lei. O direito como já aludido é coercitivo, pois a coação é a nota característica deste sendo que em toda a estrutura do direito a coação está inerente, permeando assim toda a ação humana que se projeta para o externo.
Convém ressaltar, que por vezes os peritos e especialistas neste ramo para avaliar determinado caso e determinadas ações praticadas por certos indivíduos, os quais estão passando por algum julgamento jurídico, investigam todas as possibilidades e fatores que levara uma pessoa a praticar tal ato que transgredira a lei (direito). Neste sentido, o direito não cuida tão somente daquilo que se exterioriza, mas também leva em conta o mundo da intenção.
Por outro lado se é certo que o direito só aprecia a ação enquanto projetada no plano social, não é menos certo que o jurista deve apreciar o mundo das intenções. O Foro intima é de suma importância na ciência jurídica (REALE. 1983.p.28).
Porém, no que se refere ao conceito kantiano de moral que é autocoercitivo internamente (subjetivamente) e não determinado por móbil externo algum fica claro que o direito neste sentido não está combinado com nada ético, no sentido que Kant propõe. Então, o direito “[...] não exige senão fundamentos externos de determinação do arbítrio”. (LEITE. 2007.p.99) Neste viés, os deveres na legislação jurídica inegavelmente são externos, posto que a mesma somente exija ações que possam estar em conexão com a lei.
O direito diferencia-se não por apresentar uma legislação de caráter diferente sendo heterônomo, mas simplesmente por admitir a possibilidade de um móbil diferente do respeito pela lei. Em todo caso, a coação “moral” externa é definida em termos de ameaça de violência física, tratando-se da autorização para a extorsão de uma determinação do arbítrio alheio.
Assim, os indivíduos em sociedade que é regada por leis jurídicas estão somente na obrigação de cumpri-las, ao passo que, uma vez haja transgressão dos mesmos ferir-se-á o direito de outrem e, conseqüentemente trará danos e incômodos a sociedade “organizada” juridicamente.
A conseqüência disso é que o direito só ocorre entre seres humanos, visto que entre seres livres, mas também do ponto de vista de seres que possam limitar seus arbítrios, isto é, não entre seres que não possam ter direitos e deveres. (SALGADO. 1995.p.245)
Em outros termos, todo ser racional possui a faculdade moral plena de realizar uma ação justa, ou seja, todos têm o direito de realizá-la ou de determinar o seu arbítrio no sentido de sua realização no mundo externo. A ação é injusta por derivação aquela que impede a realização de uma ação justa, quer dizer, aquela que impede o livre exercício do arbítrio alheio constituindo, por conseguinte, um obstáculo à coexistência universal dos arbítrios livres. Se uma ação injusta impede o arbítrio no exercício de sua liberdade segundo o princípio da universalidade, então impedir a ação injusta pode ser considerado uma ação justa, de certa maneira complementar (e eventualmente necessária) à ação justa pretendida inicialmente pelo arbítrio. Sendo assim, a coação pode ser justa precisamente na medida em que visa impedir uma ação injusta, quer dizer, impedi-la por exatamente impedir o livre exercício do arbítrio alheio. Ora, tudo o que é injusto é um impedimento da liberdade segundo leis universais, a coação, no entanto, é um impedimento ou resistência sofrida pela liberdade. Posto desta forma, então Kant ressalta que o direito também “é um conceito racional puro, prático da escolha sob leis da liberdade”. (KANT. 2003.p.95) É exatamente por isto que se constatam inúmeros casos de ações tomadas pela segurança Pública para com os indivíduos de uma determinada sociedade por meio a ameaças e violência, para que determinados transgressores não transgridam as leis existentes, sendo que isto é: a: “existência da teoria da coatividade do direito, em que as normas são feitas valer por meio da força”. (BOBBIO. 1995.p.28).
Neste sentido, toda esta normatividade de leis e penas causa certo “receio” nos seres sociais, sendo que através da coação não agirão de maneira negligente perante a lei.
São inúmeros e claros os casos e exemplos existentes que podem elucidar este assunto de uma forma mais ampla, pois através de jornais e noticiários televisionados, ficam expostos fatos onde pessoas descumpridoras das leis feriram o principio do direito. Neste sentido, muitas vezes a sociedade fica perplexa e revoltada com crimes e barbáries cometidas por “meliantes” inconseqüentes que tão somente descumpriram cabalmente as leis, feriram o direito e a liberdade e os sentimentos dos demais. Nisto, percebe-se que a legislação jurídica não é a que prescreve deveres com relação aos outros, mas aquela por cujo cumprimento se tem responsabilidade perante a coletividade.
Portanto, pode-se elucidar o que já fora afirmado através de exemplos práticos, reais e conhecidos que ocorreram não noutro continente, mas no próprio Brasil, como por exemplo, ocorrido no Estado do Maranhão na faixa de 1999/2000 o caso Francisco das Chagas que aliciou 42 menores, causando constrangimento nestas crianças e também a morte de algumas delas após o ato libidinoso. Isto de fato, moralmente falando, ele considerou os menores (seres humanos) como simples meio e não como fim em si mesmos. Este assassino para satisfazer um fim, isto é, um desejo e um vício seu ele cometeu esta barbárie com a vida de outrem. Tendo em vista este exemplo, o direito não exige esta auto-coerção moral, mas que o dever e a lei sejam cumpridos, ainda que contra a vontade do indivíduo, este indivíduo poderia tão somente andar conforme a lei respeitando a vida e a liberdade dos demais. Todavia com estes 42 casos ocorridos, todas as vítimas e a sociedade como um todo, foi afetada pelo fato de um indivíduo não respeitar o arbítrio, e permear na liberdade dos demais.
Além disto, é perceptível também que inúmeras pessoas tão somente cumprem a lei e andam conforme ela por medo de suas penas, o que se subentende que estas são ações hipotéticas, pois não agem por dever, mas através do receio. Assim, tem-se o exemplo existente no Código Penal Brasileiro que segundo o artigo 155 diz que furto é: “Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena-reclusão, de uma a quatro anos e multa”.(ANGLER. 2004. P. 869) Nesta linha de raciocínio, percebe-se que para a Juridicidade o importante é que a ação prescrita seja cumprida ainda que por mero interesse pessoal ou fim visado, pois a lei tem de ser cumprida não por dever (auspflicht), mas somente conforme ao dever (pflichtmässig) o que é totalmente distinto. Isto ocorre exatamente quando alguém deixa de furtar algo por causa das conseqüências que possam advir, isto é, por temor a uma pena e por medo também do descrédito perante os demais. Sendo isto para o direito uma ação válida.
Parece óbvio que um ser pensante e racional não irá furtar coisa ou bem algum que seja alheio, pois assim fazendo estará correndo o risco de ser penalizado pela lei que já estabelecera padrões a serem obedecidos. E então ser enquadrado no Código Penal Brasileiro 155 e recluso de maneira constrangedora perante o público da sociedade por tal ato cometido, onde certamente sua honra será abalada. Não obstante, há outro crime que é passível de pena, este se denomina de roubo que segundo o artigo 157 do Código Penal é:
Subtrair coisa imóvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência à pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência (ANGLER. 2004. P. 869).
Ao ocorrer esta eventualidade com alguém, sendo que o agente da ação ao ser capturado, ou preso cumprirá “Pena- reclusão, de quatro a dez anos e multa” (ANGLER. 2004. P. 870).
Logicamente que há também dentro desta infração, os agravantes que poderão aumentar em um terço a pena do infrator o que logicamente será exercido pela justiça existente, no caso, a brasileira. Esta pena e somente a sua existência na forma teórico-legislativa provoca também medo e receio naquele que deseja praticar tal ato, pois, sua liberdade então será restringida caso a justiça venha a evidenciar-se em sua vida após “cometer” tal infração, e ferir a ordem social e afrontar o princípio do direito.
Esta dita infração (roubo) em realidade afeta e fere a liberdade de outrem, e o seu direito de posse á determinado objeto, sendo que o próprio Kant dá um exemplo de um suposto ocorrido desta natureza:
[...] alguém que a afete sem meu consentimento (por exemplo, arrebata uma maçã de minha mão) afeta e diminui o que é internamente meu (minha liberdade),de sorte que sua máxima está em direta contradição com o axioma do direito.(KANT.2003.p.96)
Não obstante, o dever no âmbito jurídico é um dever para com o outro, uma relação de respeito e conformidade a lei, pois o dever jurídico então expresso é externo e não leva em conta o que motivará uma ação ocorrer.
No direito, se a conformidade com a lei (cumprimento) se fez por temor da sanção, por receio a um castigo religioso, ou descrédito social, etc. Em nada interessa isso ao direito, que se dá por satisfeito por ter sido sua lei observada. (SALGADO. 1995.p.257)
Assim ocorre no direito, pois a ação deve assim se exteriorizar, ou seja, confrontar-se com o arbítrio do outro, pois a ação só torna-se relevante para o direito quando se exterioriza. Logo, ela (a ação) deve se deparar com a liberdade do outro. E exatamente desta forma há diversas sociedades organizadas conforme a justiça, onde nela cada um tem a liberdade de fazer o que quiser, contanto que não interfira na liberdade dos demais
É conveniente lembrar a existência de subtemas que dentro da linha do direito são constantemente estudados e analisados, temas estes que embora “diferentes” estão incluídos neste estudo acerca do direito. Seria, o direito privado, que está ligado ao estado natural, e o direito público que é conhecido também como direito positivo ou condição civil.
3.2 Direito Privado
Dentro deste sub-tema, percebe-se que Kant trata em principio da noção de direito a algo externo do que supostamente é “meu” e “teu”. E para que isto ocorra, ele explícita a necessidade de se estar em uma condição jurídica, ou seja, em uma condição civil.
Assim, é somente uma vontade submetendo todos á obrigação conseqüentemente somente uma vontade coletiva e geral (comum) e poderosa é capaz de suprir todos tal garantia. Contudo,a condição de estar submetido a uma legislação externa geral(isto é,pública) acompanhada e poder é a condição civil. Conclui-se que apenas numa condição civil pode alguma coisa externa ser minha ou tua (KANT. 2003p. 101).
Mesmo fazendo esta afirmação inicial, Kant abre a possibilidade de haver sim, um direito jurídico dentro do direito privado (estado de natureza) o que os demais jusnaturalistas não aceitavam. Com isto, expõe conceito sobre objetos externos sob a possibilidade de ser algo “meu” ou “teu” (de outrem), além de tratar sobre o conceito de posse meramente jurídica de um objeto externo, isto é, alguma coisa que poderá ser “minha” ou de outra pessoa.
Contudo, Kant trabalha nesta linha de raciocínio como em pleno estado de natureza (terminologia hobbesiana) alguma coisa externa pode de fato ser “minha” ou de alguma outra pessoa. Porém, o mesmo a respeito disto diz:
Não estou, por conseguinte, obrigado a deixar intocáveis objetos externos pertencentes a outros, a menos que todos os demais me proporcionem garantia de que se comportarão segundo o mesmo principio com respeito ao que é meu (KANT. 2003.p.101).
Neste sentido, não existe nenhuma obrigação de respeitar-se aquilo que é de posse de outrem ao passo que não há um acordo coletivo que firmará esta obrigação de respeito de um para com o outro. Isto só existe em uma legislação pública, ou seja, na condição civil. E nesta condição civil conseqüentemente há uma Constituição, logo, “não haverá problemas” no que se refere à possibilidade de posse, pois os “meus” objetos e de outros estão assegurados exatamente por esta Constituição.
Minha posse da escolha alheia, no sentido de minha faculdade de determiná-la por minha própria escolha a um certo feito em conformidade com leis da liberdade(o que é extremamente meu ou teu relativamente á causalidade de outrem),é um direito (do qual posso ter diversos contra a mesma pessoa ou contra outros);porém,há apenas uma única síntese(sistema)de leis,o direito contratual de acordo com o qual posso participar desse tipo de posse.(KANT.2003.p.115)
Desta forma, esta posse física constitui em realidade uma mera relação empírica. Posto que se alguém tenta obter algum objeto,que não lhe pertence, ferindo o arbítrio de outrem, está também impedindo o exercício da liberdade externa de ação do possuidor de tal objeto. Sendo isto considerado sobremaneira no “direito civil”
Porém, no estado de natureza para se possuir alguma coisa externa que se chama então de posse física sendo que esta “tem a seu favor a presunção jurídica de que será convertida em posse jurídica através da união com a vontade de todos numa legislação pública, e em antecipação a isto é válida comparativamente como posse jurídica ” (KANT. 2003.p.102 grifo nosso).
Chama-se assim então de estado de natureza pelo fato do direito privado diferenciar-se amplamente do direito público conforme assenta Norberto Bobbio:
Portanto, se por direito privado deve-se entender um direito que se diferencia essencialmente do direito público ou estatal e não seja uma parte dele e assim como é geralmente entendido o direito privado, deve-se chegar à conclusão de que o direito privado identifica-se com o direito que é próprio do estado de natureza (BOBBIO. 2000.p.137).
Logo, este direito privado atrela-se ao direito natural sendo que neste estado às relações jurídicas atuam somente entre indivíduos que buscam seus interesses particulares.
Contudo, um assunto extremamente ligado à posse e ao direito privado é a idéia de propriedade e transferência. Nisto Kant entende esta transferência como sendo alienação, terminologia muito utilizada hodiernamente. Este pensador ressalta que suposto acordo (transferência de bens) não deve se dá por meras palavras, aperto de mãos ou promessas, pois segundo ele poderá arrepender-se aquele que fez tal promessa e voltar atrás, pois não há nada que o - obrigue judicialmente a cumpri-la. Assim, só há um modo de ter-se segurança na aquisição de uma determinada propriedade, pois, “Somente uma dedução transcendental do conceito de aquisição via contrato é capaz de remover todas essas dificuldades.” (KANT. 2003.p.117). Logo, o contrato nada mais é do que ceder por parte de um partido de seu direito com aceitação deste por parte de outrem. Contudo, além do que fora então tratado, é interessante perceber que Kant volta-se por vezes dentro do direito privado à assuntos sobre posse, direitos de aquisição de determinados bens além, de tratar sobre a sociedade doméstica, isto é, o direito matrimonial. Por exemplo, o casamento segundo o autor “é uma relação de igualdade de posse, igualdade tanto na sua posse de recíproca como pessoas quanto também igualdade na sua posse de bens materiais.” (KANT. 2003.p.123) Isto, é natural ocorrer nos dias atuais em que casais separam-se, mas disputam judicialmente a guarda dos filhos e também bens materiais, ou seja, as propriedades físicas.
Porém, referente ao contrato que é um assunto constantemente discutido neste tópico pelo autor, ele faz questão de ressaltar de forma bem clara que a promessa não dá a ninguém nenhuma garantia de que um resultado esperado venha certamente ocorrer. Mas, por intermédio do contrato há esta garantia" conforme segue:
Visto que esta garantia pertence externamente à modalidade de um contrato, nomeadamente a certeza de aquisição por meio de um contrato, trata-se de um fator adicional que serve para completar o meio de alcançar a aquisição que constitui o propósito de um contrato (KANT. 2003.p.129).
Ainda, o filósofo expõe alguns tipos de contratos existentes como; O contrato gratuito, que se refere à doação de algum bem; O contrato oneroso, que está ligado à alienação ou troca de mercadorias; O contrato de locação, que está voltado tanto a um objeto particular que é locado quanto a contrato de trabalho (mão de obra)etc. Com todos estes exemplos dentro do direito privado é perceptível que este direito refere-se ao estado de natureza e está fundamentado em princípios à priori, em que subsistem somente interesses individuais, mas que mesmo assim estes interesses privados e particulares podem ser (são) regulamentados pelo direito público
Destaca-se que para os jusnaturalistas o estado de natureza é um estado não-jurídico, pois para eles o direito é público, logo somente há direito no estado civil. Conforme Bobbio:
Os jusnaturalistas visam a oferecer ao Estado um fundamento jurídico, e, portanto, são obrigados a admitir a existência de um estado jurídico, anterior ao Estado; os positivistas coerentes com seus pressupostos de não reconhecer outro direito a não ser aquele do Estado podem fundar o poder do Estado somente na força, ou seja, no fato de que esse poder existe e é capaz de manter-se (BOBBIO. p.145).
A grande sacada de Kant é exatamente o que estes acima não aceitam, pois segundo ele o estado de natureza é sim um estado jurídico, mas só que provisório, pois peremptório é somente o estado civil. Ao afirmar que este estado de natureza é provisório, Kant quer dizer que pela falta de uma coação organizada dentro deste, e por falta também de uma garantia comum as liberdades externas dos indivíduos, ele esta destinado a não durar.
É óbvio que o estado de natureza é sim um estado de direito, no entanto provisório, pois a aquisição de algo de direito só ocorrerá de fato em caráter temporário. E se neste estado não houvesse direito, não existiria então o direito de obrigar aos outros a sair dele para assim constituírem um estado civil e conseqüentemente, este não surgiria. Portanto, se constituir um estado civil como sendo jurídico é necessário que esse estado surja de um anterior, que será sem dúvida o natural. Porém, por ter se falado em posse, convém ressaltar que somente no direito público será de fato possível a posse de algo de forma peremptória, e definida juridicamente por uma autoridade superior, em que tal fato deverá ocorrer de maneira respeitosa no que tange a liberdade dos demais indivíduos inseridos neste estado civil.
3.3 Direito Público
O direito público em realidade é o direito positivo, emanado do legislador que regulará os negócios privados e também as relações entre autoridades públicas e os cidadãos. Além de ser também uma determinada “doutrina” estabelecida pelas autoridades superiores que dá soluções a casos ocorridos entre os indivíduos que compõem uma determinada comunidade. E nas palavras de Kant ( 2003.p.153) define-se como: “O conjunto das leis que necessitam ser promulgadas, em geral a fim de criar uma condição jurídica é o direito público”. Com isto percebe-se que o direito público é constituído como tal pelo fato de ser destinado não somente a determinados indivíduos com seus interesses particulares, mas ao povo em geral para que junto vivam em concordância sem afetarem-se uns aos outros, isto mediante é claro uma legislação estabelecida. Logo,
O direito público é, portanto, um sistema de leis para um povo, isto é, uma multidão de seres humanos ou para uma multidão de povos que, porque se afetam entre si, precisam de uma condição jurídica sob uma vontade que os una, uma constituição de sorte que possam fruir o que é formulado como direito (KANT.2003.p.153).
Além disto, o direito público é também um conjunto de leis que precisam de uma proclamação em caráter universal, para então assim produzir um estado jurídico. Neste sentido, Kant trata primeiramente sobre a necessidade deste direito público, posto quê, entre os seres humanos há uma “malevolente tendência para se atacarem mutuamente antes de aparecer à legislação externa dotada de poder.” (KANT. 2003.p.154) E, esta dita legislação por meio de coerção da lei pública faz com que os indivíduos tenham limites e respeitem também a liberdade um do outro. Para que isto ocorra, ou seja, para que a vontade de um seja aceita por outro, deve certamente haver concordância ente a vontade de cada indivíduo, para que então os tais liberdades não sejam afetadas. Nisto ressalta Kant (2003.p.156):
Portanto somente a vontade concorrente e unida de todos, na medida em que cada um decide o mesmo para todos e todos para cada um, e assim somente a vontade unida do povo pode legislar.
Na concepção de Kant, estes indivíduos exatamente por poderem legislar de forma unívoca são chamados de cidadãos (cives). Logo, estes cidadãos que se relacionam em conformidade com as leis que são promulgadas publicamente constituem a sociedade civil que se denomina de Estado.
No entanto, para se alcançar este tão almejado Estado e para que este se constitua deve antes haver uma constituição civil, só ocorrerá quando os indivíduos fizerem a migração do estado de natureza para o estado civil. Quando se percebe a necessidade da saída do estado de natureza para o civil que conforme as palavras de Kant:
A primeira coisa que tem a resolver é estabelecer o principio segundo o qual é preciso abandonar o estado de natureza, no qual cada um segue seu próprio critério, unir-se com todos os outros, submeter-se a uma coação legal externa pública e, assim ingressar numa condição na qual o que tem que ser reconhecido como a ela pertinente é determinado pela lei e lhe é atribuído pelo poder adequado; em síntese: deves-se acima de tudo o mais, ingressar numa condição civil (KANT. 2003.p.154).
Contudo, é necessário fazer algumas ressalvas a respeito desta passagem do estado de natural para o civil, onde exatamente aí, Kant diferencia-se dos demais jusnaturalistas. Tanto em Hobbes quanto em Rousseau a passagem do estado de natureza para o estado civil somente ocorreria com a total eliminação do primeiro estado no segundo, sendo que se abria mão totalmente dos direitos naturais para a autoridade do Estado, e assim os indivíduos estariam finalmente em um estado absolutamente novo.
Kant, embora tenha sofrido significativas influências do pensamento de Rousseau, permaneceu ainda como um pensador liberal, e este pensamento sem dúvida é o que compõem a concepção política do Iluminismo. Com isto, Kant não adere à concepção de total eliminação do estado de natureza quando se dá a passagem para o estado civil, como ocorrera com os outros jusnaturalistas, e sim, defende que o direito privado não deve ser aniquilado do direito público, mas desfrutar de garantias que não há no estado de natureza. Portanto, o estado civil, segundo este raciocínio, não “nasce” para anular o natural, mas sim possibilitar o seu pleno exercício por intermédio da coação, logo, ambos os direitos estão em Kant em um estado de integração.
Destarte, a mudança ocorrida nesta transformação, ou seja, na passagem de um estado a outro, não é substancial, mas sim formal, tal como ressalta Bobbio (2000.p.192):
E mesmo quando Kant indica como provisório o estado de natureza e como peremptório o estado civil, indica claramente que a modificação, ainda que importante não é substancial,mas formal.
Após esta mudança de estados, ou seja, após a constituição do estado civil o direito torna-se formalmente público, embora substancialmente ainda seja privado. Quanto a isto Kant ressalta: “Devido à sua forma, pela qual, todos estão unidos através de seu interesse comum de estar numa condição jurídica, chama-se o Estado de a coisa pública.” (KANT, 2003.p.153). Evidentemente, que a passagem deste estado de natureza para o civil além de uma necessidade (por causa da situação provisória da primeira, que em breve cessará) é um dever para o homem, pois a Constituição Civil-Estatal não é a penas um mero capricho e uma simples necessidade natural, mas uma exigência moral.
Além disto, Kant aproxima-se de Locke no que tange à relação entre direito natural e o positivo. Contudo, ele distingue-se também de Locke, pois para este a passagem de um estado a outro, ocorre por motivos interesseiros, porque o estado de natureza é considerado como um estado prejudicial e desconfortável, logo, esta transição ocorre por mero cálculo interessado. No entanto, em Kant ocorre o contrário, pois embora haja uma busca dos indivíduos pela tranqüilidade e segurança, ele considera o estado natural como injusto, e vê então esta passagem para o estado civil como uma obediência a lei moral.
Com esta passagem e a inserção no estado civil, acontece então que a partir daí que a liberdade dos indivíduos deve coexistir, e isto de fato cumpre o princípio jurídico, pois tais indivíduos neste estado não estão visando à plena satisfação de interesses particulares ou então a prevenção de prejuízos, mas buscam univocamente um Estado justo e moral.
É imprescindível destacar que com esta passagem de um estado para outro, ocorre o chamado contrato original. É evidente neste sentido a ligação entre Kant e o denominado jusnaturalismo tradicional, uma vez que faz uso destes instrumentos “conceituais” para a Constituição de um Estado. Para os jusnaturalistas tal contrato seria um fato histórico, pois ocorreria em uma determinada época da evolução humana. Porém, na concepção de Kant, este contrato não é um fato histórico, mas sim uma idéia da razão, que servirá para demonstrar racionalmente a existência deste Estado. Portanto diz Kant (2003.p.158):
O ato pelo qual um povo se constitui num Estado é o contrato original. A se expressar rigorosamente, o contrato original é somente a idéia desse ato, com referência ao qual exclusivamente podemos pensar na legitimidade de um Estado.
Logo, para Kant o Estado é um fato que deve estar fundamentado no consenso, sendo este um ideal e uma inspiração visados por todo em qualquer Estado existente.Este Estado é comandado por representantes escolhido pelo próprio povo, para lhe administrarem com probidade e imparcialidade, tendo como meta a conservação da coisa pública mediante uma justiça que seja não somente teórica, mas sim prática. A respeito disto, Kant fala sobre propriedade e começa usando a terra como exemplo, onde seu proprietário é o comandante soberano, mas também é proprietário de tal povo. No entanto, este soberano supremo como Kant chama, não possui terra alguma, posto que ele não possa ter tal coisa como propriedade senão, faria de si mesmo uma pessoa privada.
Portanto, esta propriedade suprema nada mais é do que a idéia de uma associação civil, que representará de acordo com os conceitos jurídicos a união necessária de propriedade privada de todos no seio do povo, tendo então um possuidor público geral, em que “a propriedade particular de cada um esteja em harmonia com o necessário principio formal de divisão, e não com princípios de agregação” (KANT, 2003.p.166).
Com estas propriedades dentro de um estado civil, e seus determinados proprietários, Kant ressalta a importância legal de o soberano exigir destes proprietários de terras o pagamente de impostos territoriais. Esta tributação não é voltada ao soberano, mas o povo ao passo que tributa esta fazendo a si mesmo, visto que “o único modo de proceder de acordo com princípios de direito nesta matéria é os tributos serem arrecadados pelos deputados do povo” (KANT, 2003.p.168). Esta imposição de tributos ao povo cabe é claro tão somente ao soberano exercer, isto sendo para a própria preservação deste povo de forma administrativo-econômica. Estes tais impostos tem o objetivo de manterem as organizações no interior deste Estado,sendo estas,por exemplo,como as que cuidam de pobres,os lares para idosos e menores abandonados e as organizações de caridade.
Em razão do próprio Estado o governo é autorizado a obrigar os ricos a proverem os meios de subsistências dos menos favorecidos, ou seja, daqueles que nem mesmo conseguem satisfazer as suas próprias necessidades naturais que de fato são indispensáveis. Assim, os mais favorecidos (ricos) neste ato de sustento e manutenção de outros, assumem certa “obrigação” referente à coisa pública. Com isto, o Estado exige legalmente a contribuição destes para a própria manutenção de seus concidadãos, sendo que estes “ricos” antes de tudo devem sua existência ao Estado. No Brasil e no mundo todo, atualmente percebe-se a vontade de “emancipação” de determinadas classes de empresários que se baseiam no advento do neoliberalismo para então se tornarem independentes do Estado, mas com a inesperada crise econômica mundial (2008-2009), estes voltaran-se imediatamente ao amparo econômico do Estado, necessitando de injeções financeiras pra que seus negócios e suas supostas “independências” não chegassem ao fim. É perceptível que em Kant a existência da constituição de um Estado forte e mantenedor de si próprio através da contribuição do povo, o que de fato fica claro também o ideal de um Estado igual a todos (não ditatorial e nem despótico), mas sim democrático, que possui uma enorme responsabilidade de proteger e zelar por seus membros. Kant falará também acerca administração econômica do Estado que se dará também por intermédio da tributação controlado pelo soberano.
Esta tributação que o Soberano impõe ao povo para a manutenção do Estado ocorre de forma coercitiva, visto que:
O Estado o fará mediante a coerção, mediante a tributação pública, não meramente contando com contribuições voluntárias, algumas das quais são feitas visando ao ganho. A questão que se coloca é se o cuidado do pobres deve ter seus recursos supridos por contribuições correntes,coletadas não pelo mendigar,que é intimamente aparentado ao roubo,mas por cobranças legais,de sorte que cada geração sustenta seus próprios pobres,ou,em lugar disso,por ativos gradualmente acumulados e por instituições piedosas me geral(tais como lares para viúvas,hospitais,e similares). Somente o primeiro sistema,do qual ninguém que precise ver pode se furtar é passível de consideração em consonância com o direito de um Estado;pois mesmo que as contribuições correntes aumentassem com o número dos pobres,esse sistema não faz da pobreza um meio de aquisição para os preguiçosos,e assim não se converte um carga injusta imposta ao povo pelo governo(KANT,2003.p.169).
Esta organização do Estado é imprescindível com a participação do povo para que ele venha a manter-se,sendo na verdade um modo coercitivo de gestão publica,posto que os tributos(impostos) até hoje é uma realidade na vida dos cidadãos de todas as sociedades.
Kant faz também referência às igrejas,que segundo ele são instituições para culto público a Deus por parte do povo. O autor neste sentido destaca que estas se tornaram uma necessidade do Estado, pois as pessoas nela (igreja) assim consideram a si mesmas como súditas também de um determinado poder invisível supremo, os quais possuem a necessidade de renderem homenagem a ele. Contudo, o Estado não dispõe do direito de legislar as constituições internas das igrejas, ou então, organizá-las e nem de determinar as crenças e liturgias das mesmas. Neste sentido, não podem impedir a realização também de seus cultos religiosos na forma da lei. Fato este que se dá até hodiernamente, visto que a própria Constituição Federal Brasileira garante que “é inviolável a liberdade de consciência e crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantia, na forma da lei, proteção aos locais de cultos e suas liturgias” (ANGHER, 2004.p.171)
Não obstante, no que tange a organização estatal, ou da sociedade, Kant asseverará acerca da necessidade das punições para de certa forma manter-se ordem social, e a convivência entre os indivíduos. Punições que o autor tratará contra crimes dos mais diversos, que são até hoje costumeiramente visto nos telejornais e noticiários em rede nacional.
3.4 Punições
Para Kant, todo ser humano dentro de um estado civil possui dignidade, ao passo que é considerado também como cidadão. Mas, a perda de tal dignidade ocorre quando alguém pelo seu ato fez perder, ou seja, através também de um crime. A punição para isto será somente imposto ao criminoso pelo chefe de estado (soberano). No entanto, “a violação da lei pública que torna alguém que a comete inapto a cidadania é chamada também de crime público, assim o primeiro é levado à justiça civil, o segundo a uma corte criminal” (KANT, p.174).
De crimes privados existem exemplos como a apropriação de dinheiro ou mercadorias por alguém sob o qual foi depositada em sua confiança; além de fraudes na compra e venda ao passo que o prejudicado possa detectá-la. Por outro lado, práticas como: a falsificação de dinheiro, o desvio de verbas públicas e também roubos e furtos são crimes públicos, pois “põem em perigo a coisa pública e não somente uma pessoa individual” (KANT, p.174). Neste sentido, a punição a ser imposta por um tribunal deverá recair sobre o próprio criminoso, a ele esta pena deve ser infligida e não sobre o povo como um todo, pois fora ele quem cometeu tal crime.
A lei da punição é um imperativo categórico e infeliz aquele que rasteja através das tortuosidades do eudaimonismo, a fim de descobrir algo que libere o criminoso da punição ou, ao menos reduz sua quantidade pela vantagem que prometeu, de acordo com as palavras farisaicas: É melhor que um homem morra do que pereça um povo inteiro. (KANT, 2003.p.175 grifo do autor)
Mesmo havendo esta punição ao criminoso, Kant é a favor da preservação da vida do mesmo, ainda que seja considerado como tal, pois a morte conforme as palavras dos fariseus, (evang.João 11:50) não seria então um justiça e sim injustiça. E senão haver justiça ou se a mesma desaparecer então “não haverá valor algum a vida dos seres humanos sobre a terra” (KANT, 2003.p.175).
Estas tais punições dentro do Estado correspondem em realidade ao principio de igualdade, fazendo alusão ao símbolo do direito, isto é, a balança da justiça que não poderá ser desnivelada e nem pender de forma errada para um lado ou outro. Este estado civil deverá possuir igualdade e justiça conforme Kant já havia exposto, ao passo que os indivíduos devem zelar pela ordem de forma unânime, pois no momento em que um individuo infringir, ou atingir a outro, estará atingindo a si mesmo,conforme assevera Kant(2003.p.175): “Se o insultas,insultas a ti mesmo; furtas dele,furtas de ti mesmo;se o feres,feres a ti mesmo:se o matas,matas a ti mesmo.”
O fato de os indivíduos concordarem de forma unívoca e respeitarem uns aos outros mediante um contrato original, prediz, que a liberdade de todos deverá ser preservada dentro do estado civil. Assim, no momento em que um indivíduo furta o bem de outro, este torna a propriedade de todos os demais insegura e acaba também privando a si mesmo de toda e qualquer propriedade. Tal indivíduo infrator deverá ter conhecimento das penas como também os demais, e como cidadãos pertencentes a um Estado possuem a necessidade de se submeterem a elas (penas), pois desta forma (coercitiva) haverá respeito de cada indivíduo para com os outros. E, em conseqüência não tomará posse (indevidamente) de propriedades e bens alheios. Isto pela existência das penas, das leis que inibem os infratores a agirem de forma criminosa.
Dizer que quero ser punido se assassino alguém é dizer nada mais do que me submeto, juntamente com todos os outros, as leis, que naturalmente também serão leis penais se houver quaisquer criminosos em meio ao povo. (KANT, 2003.p.178)
Estas penas que poderão vir a ser aplicadas aos criminosos não cabe ao povo executá-las, mas sim à justiça, isto é, ao tribunal.
Por ser a favor da preservação da vida dos criminosos, Kant se apresenta totalmente contra a pena de morte, mesmo que determinado criminoso tenha cometido um assassinato, pois tal pena não poderia estar contida no contrato civil, pois se estivesse, todos os cidadãos integrantes de um povo teriam então que ter consentido em perder a vida em caso de assassinato de outro indivíduo. Tal coisa é praticamente impossível de acontecer, pois ninguém pode dispor sua própria vida e entregá-la à morte.
Posterior a isto, acerca da forma do Estado, Kant se mostra não a favor da autocracia, nem da tirania, muito menos da oligarquia, mas adere ao pensamente democrático, no qual o poder emana tão somente do povo que escolhe seus representantes que administrarão a coisa pública.
Com isto, a liberdade dentro deste Estado Civil é por sua vez a faculdade de determinada pessoa fazer ou deixar de fazer certa coisa por sua livre e espontânea vontade, ou então, aquele que é possuidor de independência e autonomia. Contudo, dentro do estado civil os indivíduos podem agir, no entanto que não atinjam e impeçam a liberdade dos demais seres humanos que também são seres livres. Em outras palavras,
Liberdade jurídica é a liberação dos impedimentos que provém dos outros, é liberação exterior, ou seja, eficaz no domínio do mundo externo em concorrência com os outros, esforço por alcançar uma esfera de liberdade na qual seja possível para mim agir segundo o meu talante sem ser perturbado pela ação dos outros.(BOBBIO,2000.p.96)
Logo, esta liberdade evidentemente refere-se à relação de um ser humano para com os outros, pois esta liberdade externa significa liberdade com relação aos outros. Portanto, a “legislação jurídica não é a que prescreve deveres com relação aos outros, mas aquela por cujo cumprimento somos responsáveis frente à coletividade”(BOBBIO,2000.p.98). Esta responsabilidade se dá através da convivência em sociedade, em que as normas jurídicas estabelecidas regulam e limitam a liberdade dos indivíduos para que um não interfira na do outro,o que porventura ao ocorrer é por que feriu e transgrediu certamente a lei em vigor.
Exatamente do conceito de liberdade externa é que derivará a característica do dever jurídico, em ser um dever no qual um ser racional é responsável frente aos outros. E por esta tal característica do direito no sentido de liberdade externa, é que gera uma responsabilidade de um ser humano para com outros. Por outro lado, abre a oportunidade de também os outros exigirem deste ser humano e racional o cumprimento da sua obrigação frente a uma determinada comunidade.
A liberdade externa,assim como a relação recíproca dos livres-arbítrios,realiza-se na forma do direito. Destarte, o direito, regulando a relação dos livres-arbítrios, deve garantir a liberdade de cada um. Para isso, há de constituir-se em legislação universal, pois a garantia da liberdade de todos. Como a lei da liberdade determina a união de todos em uma sociedade, na qual seja possível a garantia dos limites dessa liberdade pela coação. (TAVARES, 2007.p.118)
Para o direito, sabe-se que o importante é que a ação prescrita seja cumprida ainda que por mero interesse ou fim visado, pois a lei deve ser cumprida não por respeito, mas deve-se apenas andar em conformidade ao direito. Com tudo isto,fica que a legalidade é apenas a conformidade de ações a lei,não levando em consideração seus motivos,sendo ela externa,pois toda sua sistematicidade visa a ordem e a justiça em sociedade. Neste sentido, o direito com suas leis e penas coage os indivíduos mesmo que eles não queiram, a agirem em conformidade com ela,tão somente conforme ao dever,logo,em vários sentidos ela (legalidade) diferencia-se da moral,o que de fato fica evidente no transcorrer do trabalho.