Morreu na contramão atrapalhando o sábado

Resido em Belém há 30 anos, e tenho acompanhado o crescimento no setor imobiliário que verticaliza a cidade. Trata-se de uma febre imobiliária, sendo que a capital é considerada o metro quadrado mais caro do Brasil (dados FGV). Um apartamento na planta, com três quartos, no centro, custa em média trezentos a quinhentos mil. Quando pronto, vende-se por 1 milhão super rápido.

Contudo, tal crescimento tem ocorrido de forma completamente desordenada, sendo que por inúmeras vezes os jornais locais divulgaram notícias de trabalhadores que morreram pela irresponsabilidade dos responsáveis pela obra, o que aconteceu agora, com um prédio de 35 andares que desabou na 3 de maio (Construtora Real), que fica a quatro quarteirões de casa.

Ou seja, enquanto eram apenas trabalhadores que morriam, tais fatos não eram manchetes de jornais nacionais, mas agora como o fato atingiu área nobre, e poderia ter proporções maiores, considerando que os apartamentos já seriam entregues este ano, tal fato ganhou grande repercussão, ganhando maior atenção dos órgãos responsáveis e das pessoas de um modo geral.

Até agora, somente encontraram o corpo de uma senhora que morava na casa da frente, ainda procuram os corpos dos empregados que trabalhavam num sábado, de forma ilegal, pois o Sindicato não foi comunicado. Tais trabalhadores estavam laborando justamente no dia em que iriam receber seu salário, ou seja, no dia em que iriam retornar para seu lar com o dinheiro para o sustento de sua família.

Chico Buarque fala por mim:

"Amou daquela vez como se fosse a última

Beijou sua mulher como se fosse a última

E cada filho seu como se fosse o único

E atravessou a rua com seu passo tímido

Subiu a construção como se fosse máquina

Ergueu no patamar quatro paredes sólidas

Tijolo com tijolo num desenho mágico

Seus olhos embotados de cimento e lágrima

Sentou pra descansar como se fosse sábado

Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe

Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago

Dançou e gargalhou como se ouvisse música

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado

E flutuou no ar como se fosse um pássaro

E se acabou no chão feito um pacote flácido

Agonizou no meio do passeio público

Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último

Beijou sua mulher como se fosse a única

E cada filho seu como se fosse o pródigo

E atravessou a rua com seu passo bêbado

Subiu a construção como se fosse sólido

Ergueu no patamar quatro paredes mágicas

Tijolo com tijolo num desenho lógico

Seus olhos embotados de cimento e tráfego

Sentou pra descansar como se fosse um príncipe

Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo

Bebeu e soluçou como se fosse máquina

Dançou e gargalhou como se fosse o próximo

E tropeçou no céu como se ouvisse música

E flutuou no ar como se fosse sábado

E se acabou no chão feito um pacote tímido

Agonizou no meio do passeio náufrago

Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina

Beijou sua mulher como se fosse lógico

Ergueu no patamar quatro paredes flácidas

Sentou pra descansar como se fosse um pássaro

E flutuou no ar como se fosse um príncipe

E se acabou no chão feito um pacote bêbado

Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado

Por esse pão pra comer, por esse chão prá dormir

A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir

Por me deixar respirar, por me deixar existir,

Deus lhe pague

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir

Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir

Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair,

Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir

E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir

E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir,

Deus lhe pague."

Por essas e por outras que mudarei de cidade mês que vem!

Partir
Enviado por Partir em 30/01/2011
Reeditado em 30/01/2011
Código do texto: T2761444
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