Das Estrelas

Estava sentado na calçada de casa evitando as pessoas do lar com suas grandes intrigas por reduzidos motivos que tanto me exasperam pela falta de utilidade e propósito. Uma terça-feira de feriado tediosa como nunca foi. Pensar em fazer alguma coisa me dava mais vontade de esticar as pernas na cama. Até que tudo começou a ficar demasiadamente enfadonho e resolvi sair do quarto. Dei uma caminhada de algumas horas inventando roteiros e desistindo deles conforme eram percorridos. Matava o que estava me matando: o tempo. Precisava erradicar a ansiedade que me consumiu durante a madrugada e o tédio que me consumiu durante o dia. Anoiteceu e eu acompanhei o sol se pondo de um banco úmido de praça com um rotweiller magricela ao meu lado. Tantos prédios ofuscando a visão! Comecei a devanear, a enveredar num delírio onde eu finalmente conseguia comprar um apartamento no vigésimo andar e lá passaria a morar com uns dez gatos. Acordaria com o silêncio. Nada de vozes incômodas de pessoas mal-educadas no cômodo contíguo. No máximo, dez ronronares e vinte pares de olhos me observando bocejar no começo do dia. Continuei caminhando calmamente pelas ruas do bairro. Alguma coisa no ar denunciava um domingo. Dois domingos na mesma semana. O ruim disso são as duas segundas-feiras que vem em seguida. Mas na minha condição atual todos os dias têm sido muito iguais. Não há distinção entre uma quinta-feira ou um sábado. Por enquanto. Durante todo o trajeto que percorri, em quase todas as ruas, vielas e travessas, interrompi a caminhada por alguns minutos pra brincar com algum gato que surgiu na minha frente. Foram vários! A maioria me evitou, claro. Com medo ou com indiferença. Os outros roçavam na minha perna, tentavam morder meus dedos e batiam em disparada quando se sentiam ameaçados por mim, por algum carro ou cachorro ou transeunte. Comecei a me sentir melhor. Tinha tirado o dia pra tentar de alguma forma me aproximar das pessoas mas não consegui. Eu nunca consigo. Algo pestilento e de mau agouro parece estar acima da minha cabeça nos últimos dias e isso anda me deixando preocupado e pensativo. Diverti-me ao constatar que me dou melhor e consigo ter real interesse em lidar com animais a lidar com pessoas. Pessoas me dão medo, raiva, tédio. Sempre previsíveis, sempre inseguras, sempre necessitadas de alguma coisa. Passei em frente a uma igreja que tem poucos anos de vida e tem um tipo de construção padrão. Aquele templo de contemplação, de erradicação dos pecados, de contato com o Algo Superior que rege as coisas, que criou as coisas. Na frente da igreja dois cachorros tentando trepar. Um subia no outro e ficava lá fazendo os movimentos característicos até que o que estava por baixo desistia e lançava uma mordida no primeiro. Ficaram nisso por algum tempo. Eram dois machos. Iriam para o inferno por conta disso? O mal é pensar. A praga do ser humano é pensar. A lástima do ser pensante é o próprio pensar, pensei com meus botões. Essa ignorância dos animais é linda! Parei em outra praça e tomei um refrigerante olhando o movimento. Filas, motos, carros, pessoas correndo, crianças correndo, cachorros correndo. Após um longo período de contemplação e inquietude, deitei na grama e fiquei olhando as estrelas. Aqueles pontinhos de luz cintilando. Aquelas luzes atrasadas. Suspirei um pouco decepcionado quando um avião cortou um devaneio que não consegui recuperar - a segunda vez que tal fato ocorreu no mesmo dia. Fiquei observando o curso que o avião seguia. Para onde estaria indo? Aviões, aviões... Voltei às estrelas, pois elas também me lembravam algo. Repudiei a lembrança com um ricto de desgosto. Coisas próximas poderiam ser a resolução dos meus anseios. Mas minha alma necessita de mais, carece do inescrutável, anseia pelo novo, clama por perigo. Sou demasiado humano... E, indo contra mim mesmo, uma frase da Virgínia Woolf ressoava em algum canto da minha cabeça: "(...) não há portão, nem fechadura, nem trinco que você consiga colocar na liberdade da minha mente". Tirei as correntes e trincos da mente e me permiti a abertura suficiente para elaborar as mais fantasiosas das ilusões. Estremeci com o que era capaz de idealizar olhando um brilho que chegava até a minha retina com centenas de dias de atraso. Aquele brilho poderia muito bem estar alcançando uma certa retina ao mesmo tempo que a minha e isso seria o mais próximo de um contato que dois corpos tanto querem ter. Mais um avião surgiu no céu, com suas luzes piscando, emitindo sinais. Seguia a mesma rota do primeiro. Para onde essas pessoas estão indo? Perdi outro devaneio desmitificador me fazendo tal pergunta. Resolvi levantar e voltar ao lar. Assim o fiz. E a aura de tédio continua por aqui me envolvendo com seu manto deprimente. Talvez eu seja acometido por alguns remorsos nos dias do porvir. Talvez a névoa destas ilusões se dissipe com os raios da realidade crua em que vivo. Talvez. Saí novamente, sentei na calçada com um caderno e comecei a escrever, escrever...

26/01/2011

Hot Water Music - Arms Can't Stretch

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 26/01/2011
Reeditado em 07/12/2011
Código do texto: T2752424
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