A Criança
Acabam de deixar a maternidade. Pesam a criança no açougue, mesmo. Sem ossos, um quilo e novecentos. O suficiente para o jantar de uma semana. "Salve a tua gestação", disse o pai da família, que já tinha as costas envergadas. A mãe, que era uma velha alta, franziu as vistas quando percebeu que a vizinha, grávida de quíntuplos, tinha sido o melhor investimento da natureza, nos últimos tempos. Tratavam-na como uma rainha, estava radiante dentro do carro, ao lado do marido, os olhões no grande volume que tinha no ventre.
Comeram as coxas e as nádegas, que eram a parte favorita da família, e não pouparam as batatas, o molho feito à base dos dedos e pés, pimenta de cheiro e um bom refogado de cebola e alho. Todos chegaram a repetir, e não houve nada para além daquela indescritível sensação de saciedade, o prazer emergindo aos poucos, conforme vem o sono que a todos encanta depois do repasto. Tomavam cerveja, ainda, aos goles e palavrões, debatendo sobre como as cruzes deveriam ficar num único lugar, não como fronteira entre o povo e toda e qualquer realidade. Era "simplesmente uma tristeza" morar daquele jeito.
A campainha tocou. "Quem diabo?", resmungou, um e outro, mais que um resmungo, foram vários. "Porra", então, se fez, e o movimento seguiu o verbo sujo. Era um garoto. "Pela mor di deus, dêxa eu entrá! Meu pai qué mi comê", dizia, pulando, as roupas um trapo, os olhos cheios de dor. "Tu tem quantos anos?", e o moleque tinha sete. O pai apareceu em seguida, com a cara suada, o corpo magro, tinha a cabeça vermelha de correr. "Opa, amigão, fugiu, fugiu, agora vem incomodar os outros? Desculpa aí, campeão, o cara te deu trabalho?", veio dizendo. O pai olhou a criança e olhou o sujeito, que tinha os olhos baixos. A criança tinha o corpo coberto de manchas brancas, estava com o rosto vermelho do sol. "Some daqui, rapaz, que tu sabe bem que criança dessa idade não se come. O menino tá aqui se urinando, por tua causa. O corpo da gente num mente assim não. Essa criança vai ficar aqui em casa, e se eu te encontrar rondando aqui, aviso logo, te arrebento e te boto na cadeia", foi o dito. O cara passou a mão no rosto, depois foi só na boca, com um jeito nervoso. "Olha aqui, filha da puta. Vou te fuder, tá valendo? Tu espera só", e saiu, como se fosse buscar algo.
"Ele vai matá vocês tudo", o menino disse. Os olhos mais calmos, satisfeito porque ia morrer com gente que ele passou a gostar naquele momento em que eram tudo contrário ao que vivera. A mãe o abraçava e ele não largava seu corpo, como se pudesse perder de vista o novo lugar. "Vai, porra nenhuma", disse o filho mais velho, "porque eu sou mais esperto que esse carcará". E saiu de casa. O menino sentou num canto, largou a mãe assim, do nada, e se sentou, abraçou as pernas e começou a cantar uma música que ouvia no rádio, sempre que se escondia no porão. Os pais se entreolharam. Os outros dois filho seguiram o mais velho.
Três horas depois, estava lá na frente o dono do menino, acompanhado de mais uns oito amigos. Cada um trazia nas mãos uma garrafa de gasolina, cada uma com um pano metido gargalo a dentro. "Ou vocês dão o moleque, ou eu queimo tudo de uma vez aí, sem pena", gritou. O pai deu um grande sorriso e se aproximou das escadas, mas ficou sob a proteção das calhas, ainda. A mulher o seguiu, amedrontada, apoiando-se no braço magro. "O que você está fazendo, homem?", sussurrou. Um dos filhos apareceu, estava do outro lado da cerca, atrás do adiantado dono da criança, que estava a poucos metros da escada. Os outros dois filhos apareceram na extremidade oposta, também do lado de fora da cerca, olhando os homens que, por um instante, tiveram aquela terrível sensação de estarem cercados. Um de um lado, dois de outro. Mas não pareciam armados. Um deles, sacou a pistola que tinha na cintura, um objeto roubado do exército. "Olha só aquilo", disse um dos irmãos ao outro, "é minha", e riu. Um click e depois, rápido como um disparo, um cabo de aço muito fino disparou de uma extremidade a outra, diante dos pais, e dos filhos, fora do campo de atuação da máquina. "Minha nossa, senhora", disse a mulher. "Não te preocupa, a lei que aprova a caça em caso de invasão de privacidade, principalmente nesse caso, onde a ameaça é mais do que comprovada, foi aprovada nesta manhã", e sorriu, olhando os filhos juntarem os pedaços e colocarem sobre uma grande lona plástica. Ela pensou em dizer que não achava justo terem colocado a máquina de caça no jardim sem avisá-la, mas depois, "por que?", e simplesmente se deixou rir. "Vai, mulher, vai ligar os freezers". É tempo de novas vacas gordas, pensaram todos, cada um a sua forma, enquanto se preparavam para criar o pequeno Canola.