Para E-Malambadoce (correto)

Era um destes casos estranhos, onde a revolta surge tardiamente, ou quase ao mesmo tempo que a obra que esta mesma revolta costuma viabilizar.

Até os últimos meses ainda resistira nele a esperança de poder mudar as coisas… Mas, por fim, ficou evidente que havia muito mais em jogo.

Entre pilhas de escritos amarelados e sonhos românticos impossíveis, o rapaz que nunca tentou uma vida comum, filho de família comum, dessas que ganham até 4 salários mínimos e gastam-no quase que inteiramente em contas e comida, além dos caríssimos rolos de papel higiênico e papel-toalha, ia tentando não entregar-se à força mais que sugadora do maldito pântano... Que pântano...? O pântano, sugador e mais que maldito onde todos pensamos sempre estar inseridos.

Ele tentava. Fazia tudo o que podia pra não se sentir um vadio frustrado e sem chance de saltar pra fora do buraco de esterco. Nunca adiantava muito, é verdade, e era como se aquilo tudo fosse obra de algum demônio desocupado e desordeiro ou então de um bando de demônios desocupados, sem nenhuma outra ocupação a não ser foder-lhe a vida.

Hahaha. Não. Não que realmente acreditasse nestes disparates, jamais... Mas punha fé, sim, no poder das metáforas.

(...Aliás, não era justamente o que vinha fazendo...? "Desvendar metáforas"...?)

Sim, era justamente isso.

...Seu último esforço nesta direção havia tomado lugar há bem poucos dias. Exatamente num "daqueles" dias, mais macabros que o de costume...

E nós nem íamos contar-lhes. Mas decidimos fazê-lo.

Foi assim:

Numa tarde especialmente soturna e de internação domiciliar, resolveu ir "dar uma volta pela casa". Apenas. Era algo que ele fazia bastante, talvez pra se exercitar, na falta de exercícios mais comuns, estes com halteres ou máquinas com molas e pesos pendurados. Um saco. Daí, parou em frente a geladeira, e após meter as mãos em uma lata de cerveja e de um copo esquisito, o último arrumado no armário da cozinha, aliás, meteu-se no banheiro com os dois.

Era dia, (dias e noites intercalavam-se rapidamente, mais ou menos sem transição) mas o banheiro era construído de maneira tal que, mesmo que houvesse luz cintilando fora, sempre parecia escuro dentro.

O rapaz bebia. Enquanto bebia, sentia-se um pouco mais louco que o de costume... "Como é que era o de costume...?" Oh, não vale tanto a pena dizer... Mas digamos: era algo acerca de querer arrancar os olhos, (e outras partes do corpo, além dos cabelos, que não possuem nervos mas ligam-se a alguns...) ou então estourar a cabeça com uma furadeira ou um revólver. A furadeira ele já possuía. Ah, perdõem-nos. Mas não era bem isso o que sentia agora. Era bem outra coisa, e logo chegaremos a esta outra coisa. Daí, nunca saberemos porquê, levantou-se do assento (i.e., vaso sanitário), era onde ele estava agora bebericando o líquido da lata, e abriu o chuveiro. Como se espera, a água pôs-se a sair, quente e profusa. Os olhos desse rapaz observavam isso, e, certamente, se não o tivessem feito, este texto não haveria de existir. Sentou-se novamente no vaso, e recomeçou a bebericar aquele líquido amarelo e etílico e tão semelhante (em aspecto) a mijo. Alguma coisa no fundo de sua alma apneica e insomne parecia saber do porquê de tudo daquilo, pois logo saberemos também… Mas, ao menos por ora, preferia, num ato de consideração para consigo mesmo, sua sanidade, eximir-se de esmiuçar os porquês. Ao atingir um certo nível de bebedice ou bebedeira, levantou-se novamente do assento tragador de sujeiras e foi bisolhar o interior do box. Havia, nesta altura, um bocado de vapor saindo do fundo, como se espera, também... Além disso, notou que a banheira estava razoavelmente cheia... O que trouxe-lhe uma visão poderosa.

Agora, a parte que não se esperava... Sim, era como se ela fosse…

uma pia batismal...

E dali foi um passo apenas pra chegar em /"úmido útero"/...

Sim, aquela banheira era para si um úmido e escuro útero, que repentinamente resolvia aparecer, no fim de todas estas semanas quase sem ver a luz de fora...

Talvez estivesse – por todo este tempo, é verdade! – procurando uma forma de renascer... Para talvez, mas também apenas talvez, poder encontrar-se com seu destino cíclico. Que assim fosse, e não apenas um útero pra se alojar.

Cabeça de cu alada
Enviado por Cabeça de cu alada em 10/01/2011
Reeditado em 05/02/2012
Código do texto: T2720965
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.