Divagações: II - Relógio-rei

O tempo fecha. As possibilidades de estio são parcas. A liberdade é esmagada. O ciclo que se renova é sempre o mesmo, piorado. O aprofundamento caótico da existência cada vez mais preso às determinações do relógio. Engraçado como o tempo se faz soberano. Prende-se a ele; as almas clamam por mais velocidade. O relógio é covarde: prende sem causa, atira por trás. Ócio é crime, já que o tempo é valor. E valor que se preze, não aceita desperdício. Tudo deve ser otimizado. Não se carece mais de um rei-mandão de carne e osso. Os que assim são, foram todos sucumbidos no reino abstrato do Relógio-rei. Nada pode subvertê-lo. Todos o reverenciam. Inclusive aqueles que, nos dias idos, combateram-no. Foi-se submetendo tudo: até as plantas e as galinhas têm crescimento coordenado e programado. Passou o tempo previsto, são descartados como detritos inúteis. Somos inúteis. Nossos relacionamentos são programados; o lazer é extensão do comando do tempo otimizado. Até as viagens - físicas ou mentais - possuem roteiro definido: não podem ser aleatórias ou por acaso. As estradas, por mais desabitadas, possuem placas indicando o melhor ponto para uma vista perfeita da paisagem - esta também determinada -, o melhor ângulo para um retrato em família. O tempo abre. Mas abre o seu próprio domínio. O estio é somente seu; a liberdade não dá a outro. Renova-se, a cada novo invento, o ciclo de dominação. O controle total é transubstanciado em autonomia individual. As vontades são singularmente definidas, de uma forma ou outra - e sempre em abstrato, imperceptível - pelo Relógio-rei.