Pensando Com os Dedos
A tela branca. Do Word esperando. Words. O teclado. Preto esperando. Esperando dedos. Dedos esperando. Palavras. Que surgem de repente querendo cristalizar algum tipo de sentimento. Querendo exteriorizar infortúnios. E ansiedades. E prazeres. E conhecimento. Confusão e. Desconhecimento. Uma barrinha preta que. Pisca: aparece, desaparece. Aparece, desaparece. Essa barrinha é o guia. Ela vai guiando as palavras pelo caminho que ela acha correto. Que o teclado acha correto. Que os dedos acham correto. Que o pensamento acha correto. Quando a cabeça pára e os dedos param a barrinha pisca. Esperando. Sempre à espera, calma. Calma como um guia que espera os turistas voltarem do banheiro. Aparece. Desaparece. Espera. E elas vêm? Vêm? Vem? Vem! Vêem? Vêem elas vindo? As crianças esmagam caracóis e brincam na areia. Dão piruetas e jogam videogame. E não sabem se limpar e não sabem mentir e fustigam os mais velhos com suas rajadas de perguntas sobre o mundo. Será que devem mesmo, saber como é o mundo, como ele o é? Os Power Rangers salvam o planeta todos os dias. Que querem, esses monstros, aqui? Monstros com cabeça de bigorna, seres metálicos com corpo de bode, faiscando, disparando raios vermelhos e azuis, arriscando a vida por rios cada vez mais poluídos, por um solo cada vez mais coberto por piche. Não é mais fácil procurar outro planeta com as mesmas condições da Terra, mas sem os seres humanos? O ano. Mais um. Ano está. Acabando e. O que isso significa. Afinal? Gatos se espreguiçam, cachorros deitam com a barriga pra cima e se esfregam no chão com a língua pra fora. Hienas abrem carcaças. Urubus sobrevoam aterros e disputam alimento com os cães de rua, com as baratas, com os ratos. Com seres humanos. Com suas mãos. Terraplanando, decapitando. Serrando. Dedilhando cordas. Cavando. Coveiros cavando. Dedos percorrendo o teclado fugindo ao escopo do que surgiu no pensamento. Mas, o que surgiu? Surgiu? Foi corrompido pelos dedos? Ou pelo teclado preto? O telefone toca. Só toca quando números desconhecidos ligam. Por engano. Desta vez, o número é desconhecido, mas não é engano. A voz traz novidades, novos horizontes, novas esperanças. Talvez, até, novos amores, novos dissabores, novas dores e novos horrores. A voz do outro lado - apesar de ser mecanizada pelo mesmo discurso diário - não parece perceber o que suscita em seu interlocutor. Que de forma involuntária embota os sentidos para conter a avalanche de emoções que o assaltam repentinamente. Isso é bom? Reprimir? Reprimir para conter as esperanças? E os dedos. Continuam dançando de acordo com a música que a mente encaminha para eles. Naquela manhã, com as tripas em chamas, com a alma embebida em encantamento, com as retinas cansadas, com o sacolejar do vagão sobre os trilhos, com o vento canalizado enregelando a ponta do nariz; o que houve, naquela manhã? Em que a caneta escorregava sobre o papel malcheiroso, vomitando as vísceras de um amor fetal, letal, quase fatal, banal; banalizado em sua concepção utópica, incongruente, embasado em memórias do que aconteceu e ilusões do que poderia vir a ser, mesclando-se, memórias e vontades, formando uma coisa só, uma pasta homogênea de dualidades, ambigüidades; e aquela manhã, aonde ela foi parar? Levando o rascunho que não foi passado a limpo, que nunca nem será? O rascunho de um sentimento que foi um verdadeiro opróbrio para a pessoa que o gerou; onde está? Foi-se, como tudo um dia vai. Perecível sentir. Perecível viver. Resta-se apenas o início. O começo. Volta-se a morder a ponta do rabo, já que o ciclo aparentemente foi cumprido. Um ciclo comprido que foi cumprido que deixou a marca, a cicatriz, para servir de alicerce empírico quando um novo ciclo for começar. A doce perda, o reflexo. O espelho refletindo olhares opacos, faróis que anunciam um interior tempestuoso, uma colcha acostumada a absorver toda a sorte de pesares e conquistas ao final do dia, incutindo novas vontades, velhas novas vontades; abstratas na simplicidade com que são concebidas e simples na complexidade com que são quando um coração bate e anseia e os pêlos ficam ouriçados e o sangue pulsa e ruboriza faces e as palmas das mãos suam e os dedos trabalham no teclado preto, bodes expiatórios de uma mente confusa que tem a imagem de uma tela branca do Word com um tracinho piscando querendo ser o guia das palavras que tentarão cristalizar algum sentimento ou infortúnio refletidas na retina cansada que arde e anseia por uma colcha que está habituada a ser o acalento deste invólucro que faz a cisão entre decisões antípodas que englobam o interior-exterior e o querer-e-não-querer e o agir-ou-não-agir e ou ser-ou-não-ser através de palavras.