Nada Se Salva

Nada se salva.

Eu enfio a testa dolorida por causa dessa erupção de ponta amarela no vidro dessa lotação e fico olhando esse poste de ferro amassado ao meio. Deve ser a oitava vez que eu vejo um poste de ferro amassado neste mesmo lugar. É o álcool? É a inclinação da curva? Ou o poste pula na frente do carro? Alguém morreu? Ficou preso nas ferragens?

Que porcaria, que grande porcaria.

Hoje eu fiquei me olhando no espelho e a torneira abriu sozinha. Eu tinha bebido algumas cervejas, mas eu estava espremendo esta espinha, com o pau encostado na pia. Ou seja, não fui eu quem abriu a torneira. Estava com as mãos ocupadas. E de pau mole.

E eu encontro o cara gente boa que era o maior safadão de toda a comunidade indo pra igreja, engravatado, com seus olhos esbugalhados e seu jeito de falar afetado. Também, pudera: maconha antes e depois do café da manhã, antes e depois do almoço, antes e depois da janta e um último baseado pra dormir bem. Mas foi orar um pouco. Deve ser um lance bacana, esse...

Aí, já dentro do Metrô, todas as elucubrações existenciais sobre a não-existência, da efemeridade da vida do ser humano, que vive suas sete décadas - o que na contagem geológica do tempo equivale a meio segundo - e volta ao pó por toda a eternidade. Volta ou vai? Veio e vai? Por que veio? Assunto batido. Constato que não tenho Q.I suficiente pra chegar aonde eu quero. O Metrô que vem do sentido oposto passa ao lado velozmente: apenas um borrão metálico flutando com uma luz acesa e outros borrões, agora humanos, dentro. Essa é a vida, na contagem geológica do tempo: um borrão metálico no sentido oposto, que passa velozmente e ninguém consegue decifrar qual é o seu sentido, ela apenas segue linear, com o seu conteúdo indecifrável, nodoso, nublado.

É o mais longe que eu consigo ir, e agora fico olhando esse ser que anda com as calças rasgadas, descalço, com o testículos à mostra, com o cabelo ensebado e um cheiro de putrefação que arde as narinas. Ninguém se importa com ele. Eu também não me importo. Não posso ajudar o pobre diabo. Queria conversar com ele. Ver o que o levou até ali, pra chegar ao ponto de não se incomodar com o próprio cheiro, pra vagar com as bolas de fora sem se incomodar com o frio que me açoita a alma, por mais agasalhado que eu esteja; sem se importar com contas a pagar, com mulheres. Espera, será que foi uma mulher que o colocou na berlinda? Chego mais perto. Está de camiseta. No seu braço tem tatuado o nome de uma mulher. O nome dela. Esse ser, esse ser que você desvia e finge que não vê, é, você que está lendo, você que se recusa a dar-lhe uma moeda, você que bate a mão no bolso cheio de notas e fala "porra, só tenho o do Bilhete Único" e sim, você desvia, mas, você ama alguém? Consegue amar? Olho a tatuagem e me pergunto se é o nome de uma filha, da mãe, da mulher... Que diabos aconteceu na vida desse homem, Cristo? Enlouqueceu? Fala sozinho? Sonha com algo melhor? Porque rasteja na existência, sendo pisado, comendo com a mão, com a merda endurecendo, incrustada no interior da bunda, passa fome, é denegrido, chutado, expulso, dorme no chão duro, rasteja pelo asfalto, come com a mão as sobras do almoço de alguma Dona Maria de alma caridosa, porra, ele vive, insiste, se arrasta, não se importa, segue subindo a ladeira com seus olhos esgazeados, não tem ódio no olhar, será que escolheu estar assim? Quero perguntar, saciar minha curiosidade. Mas não tenho como melhorar sua vida, oferecer um prato de comida, um banho, minha cama, um pouco de carinho e um cigarro. Quero só saciar minha curiosidade, sou um egoísta, um lixo, um merda, eu é que deveria estar no lugar dele, porque ele tem capacidade de amar a pessoa que está eternizada ali, na sua pele, sendo carregada em todos os seus infortúnios. Não posso perguntar, não consigo. Faria tudo por ele, se pudesse. Mas eu penso que se eu pudesse fazer algo por, não me lembraria dele. Assim como eu vou dormir e não vou me lembrar dele. Assim como você não vai lembrar dele. Ninguém nunca lembra, e lá fora está frio, frio, frio, frio e você está no quarto agasalhado enrolado no cobertor comendo pipoca e assistindo seu seriadozinho enlatado americano e eu estou olhando-o, impassivel, subindo a ladeira, indo deitar em alguma praça, sem querer saber dos perigos que o rondam, se vai acordar queimado ou se simplesmente não vai acordar, morto de frio, enquanto você se espreguiça e fica meia hora olhando a água quente caindo do chuveiro pensando se compra um carro ou uma casa.

Mas tudo bem, a vida é assim mesmo.

Agora eu desço essa avenida flutuando em cima de uma tábua com quatro rodas, com o som no último volume, com uma garrafa de cerveja morna nas mãos. Uma pedrinha poderia fazer com que eu fosse velado no dia seguinte. Passo no vão entre os carros que estão parados e os carros que seguem o mesmo rumo que o meu. Uma porta que se abre, um á mais no cemitério. Eu não me importo, dou uma golada à 30 km/h e dou uma olhada no rabo da morte. Do outro lado sobe a rua uma espécie de limusine. É da altura de uma caminhonete e tem a extensão de quatro carros. Lá dentro tem um globo girando, espalhando luzes azuis. Vejo alguns monitores lcd e algumas mulheres com copos nas mãos. Desço a rua, desço, desço, desço e ouço a música, canto, bebo minha cerveja, as paredes correm ao meu lado, eu olho pra trás e tem uma dúzia de faróis iluminando meu caminho, me protegendo, eu confio neles, confio, confio sim, pois uma dedada mínima no volante pode me quebrar todos os ossos do corpo. Então eu paro. Pego o skate na mão e sento na calçada e fico olhando uma pole dance que é exibida na lateral de um prédio decadente qualquer. A mulher é alta, usa um biquini com estampa de onça e tem uma habilidade incrível naquele cano! Bebo um gole e fico observando enquanto ela sobe e desce, se prende com as pernas, abre os braços, sorri pra câmera, gira, desce, sobe, fica de ponta cabeça. Tem um Senhor Rabo e sabe se movimentar. Eu não consigo me excitar, apenas me pergunto onde, como e quando se construiu a minha decadência. Então me levanto e continuo descendo a rua. Desço, desço, desço. Um carro pára, a biscate se pendura na janela e diz que é cento e trinta. A porta abre, ela entra. Cento e trinta e aquele homem das bolas de fora, do braço tatuado, poderia alugar um quartinho só pra passar a noite. Durante todo um mês, eu quero dizer.

Eu não me importo com eles. Tenho meus próprios problemas.

Pego os meus dois ônibus.

No último um cara me olha. Ele senta na minha frente e fica me olhando. Eu me pergunto qual é a da montadora dos ônibus, que faz esses bancos que obrigam desconhecidos a passar horas se olhando no olho. Ou evitando isso. No meu caso evitando. No dele, olhando. Tem olhos esbugalhados e vermelhos. Marte querendo sair do eixo. É negro, negro, preto, muito preto. E me olha com ódio. O que eu fiz? Dá vontade de falar "EI, qual é? Não quero roubar a sua cor!". Só quero paz, quero voltar pra minha casa e manter esse vazio confortável que eu estou sentindo. O celular dele toca e ele atende. E logo ele me esquece. Não sei porque me olha, tem um relógio caro nos pulsos. Tem dois celulares. Os botões dos dois celulares valem mais do que o meu, troço comprado de segunda mão, proveniente de lugar duvidoso, talvez fruto de roubo, pago em duas vezes, sem créditos, que recebe ligação de gente que procura um tal "Pesqueiro do Zé". Oras!

Desço do ônibus.

Coloco o skate no chão.

Desço a rua num embalo só.

Vou cruzar a avenida de forma tranqüila, após me certificar de que não vem nenhum carro. Mas uma freada repentina me assusta. O motoqueiro, o maldito motoqueiro que vagueia com o farol desligado na merda da avenida que é mal iluminada e que freia há poucos metros do meu corpo. Tanto trabalho para um filho da puta estragar tudo na porta de casa. Ele buzina, eu xingo, mas cada um segue seu rumo.

Abro o cadeado, que sempre suja minha mão de graxa. Mas o portão do meu tio tem fechadura e é limpo.

Abro a porta de casa.

Entro.

As crianças gritam e brigam por um jogo de computador.

Tem três televisões e dois videogames.

O mundo está perdido.

Egoístas por todos os lados, de todas as idades.

De tudo.

Nada.

Nada vale o esforço.

E eu tenho preguiça.

Peguei preguiça.

Finalmente.

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 14/11/2010
Reeditado em 14/11/2010
Código do texto: T2614407
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