Voltando Para Casa

Hoje, logo cedo, andando pelo longo corredor sombrio do pavilhão feminino, olhei para dentro de uma das enfermarias e me deparei com você contida em seu leito, quase sem poder se mexer e um tanto dopada. Aproximei-me e perguntei, passando a mão pelos seus cabelos, o quê tinha acontecido para que iniciasse o dia daquele jeito. À sua maneira, você me respondeu que havia aprontado porque não agüentava mais ficar aqui. Disse que tudo estava feio, diferente, mas que antes, há muito tempo, era bonito... Falou que queria voltar para casa, para sua família...

Olhei em seus olhos e rápidos pensamentos invadiram minha cabeça... Lembrei das raras visitas que você recebe, do quanto elas são apressadas e aflitivas para os pouquíssimos que procuram ter notícias suas, talvez por culpa ou obrigação... E num suspiro resignado constatei no meu raciocínio que você não vai voltar enquanto parentes puderem pagar para mantê-la distante; não sairá deste lugar psíquico e espiritualmente insalubre, repleto de gritos, ecos, palavras rudes, tormentos, insanidades de todo gênero... Eles não querem ter sua presença de novo.

Não critico nem tampouco os condeno por isso, pois sei o quanto é difícil suportá-la, e também sei como a vida se tornou melhor sem você...

Os que aqui estão, de um modo ou de outro, não prestam, não valem quase nada. Já esgotaram todas as possibilidades e chances que lhes foram dadas... São de constituição ruim, de índole violenta... São criaturas ambíguas, egoístas, mentirosas, fúteis, viciosas e manipuladoras; enfim: O detrito da nossa raça...

Há quantos anos você está nisso? Quinze? Vinte anos? Não sei dizer... Nunca tive curiosidade de saber, de pesquisar seu prontuário recheado de folhas arquivadas, nem tenho tempo para fazê-lo...

E voltando novamente a atenção para você, lhe perguntei qual a primeira coisa que faria quando entrasse em casa, você me respondeu que lavaria a louça deixada na pia antes de vir à força para cá... Sorri, e quase cheguei a sentir compaixão, mas não permiti esse sentimento tomando conta de mim, pois você não merece... Ninguém aqui merece...

Eu precisava ir embora, comecei então a massagear suas têmporas levemente de modo a conseguir com que você apagasse mais rápido. Acho que queria, no fundo, fazê-la dormir para sonhar; afinal, só nos seus sonhos terá sua remota vida de volta...

Enquanto suas pálpebras iam lentamente cerrando, eu relembrava as reflexões do personagem de um dos meus filmes prediletos, assistido por mim dezenas de vezes: “Como se retoma o curso de uma antiga vida... Como se segue em frente quando, no seu íntimo, começa-se a entender que não há volta? Há certas coisas que o tempo não pode curar... Algumas feridas são tão profundas que nos acompanham para sempre...”.

As pessoas de emocional relativamente saudável, mais cedo ou mais tarde, reconhecem que a vida não fica em stand by aguardando o nosso regresso, a nossa lucidez... Todo dia, dentro de nós ou ao nosso redor, algo se modifica, nasce, morre... Algumas dores e traumas nos transformam duramente; daí então se percebe que não tem retorno, não dá mais para rebobinar a fita... Só os alienados mentais acreditam que a louça vai estar, depois de anos, esperando por eles para ser limpa, qual se o tempo que jamais pára abrisse uma exceção e se cristalizasse...

Muita coisa em mim se metamorfoseou, estilhaçou... Tantas ilusões se evanesceram, perderam o brilho, o sentido, o valor... Quantas sensações, pessoas, frases, verdades, anseios passaram a não ser mais importantes depois que passei a laborar no interior desta construção arcaica de muros altos e portões pesados, erigida para trancafiar os estorvos de várias famílias e sociedade...

Sinto meu coração rígido, racional, forte... Incapaz de se deixar iludir por engodos sentimentais agora, porque aprendi o jogo de cada um dos que estão aqui dentro, e, por tabela, de muitos dos que estão do lado de fora...

Ter aceitado o desafio de trabalhar com a loucura humana num momento delicado da minha vida, onde eu me encontrava sem um ponto de equilíbrio, ao sabor das emoções, acreditando estar mais carente de tratamento do que os doidos que seriam colocados sob meus cuidados, foi “escrita certa em linhas tortas”. Um auxílio e terapia que só uma inteligência divina poderia elaborar...

Não consigo mais voltar para a casa do passado... Ainda não sei ao certo onde ficar, mas o que tinha antes, não me serve mais...

Assim que me dei conta dessa minha nova realidade, olhei para seu rosto e você já estava adormecida, quem sabe até de volta ao desejado lar...

Zomer
Enviado por Zomer em 28/09/2010
Reeditado em 03/10/2010
Código do texto: T2526415