Meditações em torno da Educação - I

I

Eu, um lerdo? Talvez. O fato é que eu fui como alguns raros meninos do meu tempo aquilo que o povo costuma chamar de “menino avoado”.

Sim, com o tempo eu fui notando que minha maneira de olhar o mundo sempre foi meio assim. Eu era essa espécie de pessoa que em alguns lugares do nordeste chamamos pejorativamente de “ariado” - uma pessoa sem rumo, desorientado. Em outras palavras, um menino com a cabeça voltada pro mundo da lua!

Talvez você que me lê também tenha sido assim. Não me interessavam a realidade imediata, as pequenas preocupações domésticas, rotineiras, esse tempo imediato do aqui-agora, as obrigações da escola; percebi que as coisas do mundo prático em geral sempre me eram meio indiferentes, não me interessavam. Eu era um distraído e era reconhecido e tachado como tal. Esse traço peculiar que me constitui como ser invariavelmente me causou alguns atritos com o mundo. Com meu pai - o homem mais pragmático que conheço - então, nem se fale! Muitas vezes, diante de um serviço que envolvesse essa aptidão prática, como arrumar um cano meio defeituoso, lavar o carro, conduzir carrinho de mão, eu amargava de meu pai as palavras mais mordazes “um lerdo!”, “mas é todo troncho”, “num sabe fazer porra nenhuma!”, “mas é um jumento mesmo! “Olha a merda! Olha a merda que tu vai fazer!”.

Mas é necessário dizer também que até a distração é uma coisa que podemos perceber como algo relativo. Ora, na escola, por exemplo, se me distraia com as terríveis “expressões numéricas” que a professora de matemática explicava exaustivamente no quadro negro, por outro lado minha alma evadia-se naquilo que sempre me proporcionava alegria e descoberta: o desenho. O desenho era minha forma mais autêntica de expressão e de apreensão do mundo, era aquilo que eu tinha descoberto sozinho nas minhas horas de ócio. Enquanto as outras crianças encontravam prazer em suas brincadeiras mais comuns eu descobria um mundo que poucos vislumbravam e me apropriava de uma técnica e de uma linguagem também diferente.

Ainda me lembro, era sempre assim: enquanto aquelas aulas mais chatas passavam lentamente eu me debruçava sobre a mesa e a enchia toda de desenhos. Eu me alfabetizava com os demais, decorava a duras penas a tabuada que a escola exigia para que “passássemos de ano”, mas era no desenho, e não nas aulas de matemática e gramática, que eu descobria e me apropriava do mundo. Eu percebia um mundo que era só meu, o mundo das formas e das cores, de luz e sombra, da percepção sensorial, o universo artístico, um território onde eu penetrava e me fazia mais livre. E foi essa descoberta, de perceber que a distração é algo relativo, que me salvou de padecer maiores dores e suportar o trauma de “incompetente” que meu pai e a Escola, mesmo que involuntariamente, imprimiram na minha alma.

Eu percebi que podia ser “lerdo” nos serviços que exigissem uma inteligência mais prática, mas enquanto os outros amigos e até mesmo adultos em matéria de desenho estavam só “no palitinho” eu já fazia revistinhas em quadrinhos e as vendia pro meu irmão pelo humilde preço de 25 centavos.

Só tinha um problema: qual o valor social que poderia ter essa minha habilidade de desenhar num mundo como o nosso? Para o meu irmão eu estabelecia um valor comercial de 25 centavos para as revistinhas, que, em verdade, até hoje nunca foram pagas. Se não me engano ele me deve 5 centavos na edição número 8 da Turma do Lulu. Dívidas das quais nunca cobrei. Meu prazer mesmo era dividir aquelas histórias com ele, lhe arrancar alguns risos, deslumbrá-lo. Mas, enfim, qual o valor social que poderia ter meu desenho no mundo que me cercava? Como lidavam com essa minha habilidade na escola?

Eis aqui a dura realidade que constatei: ela era muito mais valorizada pelos coleguinhas de sala do que pelos professores. Eles cercavam minha carteira, aos montes, e ficavam apreciando meus desenhos muitas vezes ali no ato de produção. Fascinados com aqueles desenhos, alguns, os mais curiosos, arriscavam perguntas: “Caramba, que legal, quem te ensinou?”, “alguém te ensinou?”, “aprendeu aonde?”, “Uau, é um dom que você tem, né?”. Mas sempre existiam os palpiteiros de plantão: “Tá ficando massa. Mas pinta o olho, pô”, “faz a unha”, “faz o braço patola assim ó”. E outros, os pidões: “faz um ursinho pra mim!”, “faz um desenho muito doido no meu caderno, faz!”, “faz uma mulher pelada com as pernas abertas!”, “desenha fulano”, "desenha cicrano", “desenha um três-oitão cabuloso aqui pra mim, véi!”. Curiosos, palpiteiros, pidões, em geral admiradores, pessoas que respeitavam e davam um valor aquilo que eu fazia, de maneira que se tornavam eles, os responsáveis pela minha vontade de melhorar minha técnica e de aprender ainda mais.

Quanto aos professores, que lamentável! Em toda minha vida escolar, tenho, no máximo, três exemplos na memória. Essas experiências, a maioria traumatizante, deixarei pra contar na segunda parte dessas reflexões.

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Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 27/08/2010
Reeditado em 28/08/2010
Código do texto: T2463674
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