Kishinev e Tiflis
Indiferente às mazelas do mundo, nunca interessei-me por política e suas diferentes manifestações; com muito orgulho proclamo que, por nunca ter eleito a ninguém, não posso ser culpado por qualquer coisa que esteja acontecendo no país no exato momento. Já fui monarquista, coisa da qual sinto uma profunda vergonha, e hoje em dia sou forçado a me preocupar com coisas maiores, como minhas batalhas diárias contra os demônios de minha culpa – batalhas estas que nenhum político pode travar em meu nome. Apesar de minha total apatia, no entanto, sinto uma certa obsessão pela estética de uma ditadura autoritária.
Desde a iconografia (vide a águia do nazismo e a foice-e-martelo do comunismo, por exemplo) às edificações angulares e imponentes, a sensação de se viver num país autoritário equivale a residir na mente de um louco – afinal, é só uma questão de tempo até que o poder de uma ideologia fanática corrompa indivíduos de mentalidade fraca. A fábula de Orwell está aí para prová-lo.
Voltando, porém, àquilo que interessa a mim, chega a ser tragicomicamente irônico o fato de que estes prédios, e tantos outros monumentos igualmente escabrosos, feitos para celebrar a personalidade e a ideologia de um bando de ditadores, hoje estejam jazendo em estados variados de dilapidação – quase que ecoando os belos versos de Shelley em “Ozymandias”. Ainda mais tragicômica foi a isolação destes povos, que deixou-os despreparados ante a “conquista” do capitalismo, mas proporcionou-lhes interessantíssimas manifestações culturais – a União Soviética produziu alguns filmes e animações de excelente qualidade. Igualmente isolado da realidade que me cercava, cresci assistindo a vários deles.
A partir daí conjurei em minha mente um país mítico, cinza, repleto de edifícios e estátuas quando imaginava o todo da antiga URSS; um híbrido de expressionismo alemão com o otimismo atômico e tecnológico retrofuturista do Kraftwerk. Tomei as tristezas de seu povo para mim, e foi em duas cidades onde meu coração encontrou conforto – duas cidades que, sem qualquer dívida a mim, acolheram minha alma peregrina e receberam-me com maior cortesia do que meus próprios conterrâneos. Kishinev e Tiflis são minhas duas amadas, e se pudesse legar-lhes minhas relíquias, entregando meu coração à primeira e meu crânio à segunda, morreria como o mais feliz dos mártires.
A primeira é de uma tristeza inconcebível, com seus prédios abandonados e seu Circo, outrora um lugar de alegrias e espetáculos, hoje adormecido. A segunda tenta apegar-se a seu áureo passado medieval, anterior ao espólio de um regime sob o qual nunca quis ter vivido. À primeira tive a chance de conhecer, e andar por suas tristes ruas; mas ainda não pude ir à segunda (onde há alguém que, noutras circunstâncias, poderia retirar o selo que Ela deixou em meu coração), e oro que, antes de meu inevitável fim, possa receber esta bênção.
Queria deixar a ambas um presente: um lindo quadro. Infelizmente sou escritor, e não pintor – em minhas mãos o ofício de São Lucas já foi demasiadamente distorcido antes que viesse a abandoná-lo em definitivo. Faço apenas um esboço, um argumento; livre está todo aquele que quiser colocá-lo em prática – não que minhas teorias possuam um grande valor intrínseco, porém.
Há uma pintura de Theodor Aman da qual gosto muito: duas donzelas unidas, numa alegoria da União dos Principados de 1859. Como tenho uma forte predileção pelo sexo feminino, meu quadro não será diferente. Imaginemos, então, duas lindas moças – uma trajada numa armadura, e a outra num vestido negro de luto. A mulher de armadura é Tiflis, uma guerreira que nada deve aos feitos de Camila, Clorinda e Britomarte; estando sem seu elmo, podemos ver seus cabelos negros, pele amendoada e estatuesco nariz. Com ternura e encorajamento em seu olhar, mas também com uma certa melancolia nostálgica, ela toma na mão o queixo de sua companheira Kishinev – loura, alvíssima, de imensos porém tristíssimos olhos azuis, dos quais escorre uma profusão de lágrimas, lágrimas estas que demarcam o malfadado rio que singra seus domínios.
Possa eu pendurar este quadro nas galerias de minha mente, e recordar-me todo dia que “bem-aventurados são aqueles que choram, pois serão consolados”!
(São Carlos, 22 de julho de 2022)