Decocção

O planeta continua girando. As folhas continuam indo do verde plastificado ao amarelo pálido e por fim ao vermelho derradeiro e seco. O farol do outono. Nem é Outono. Mas foi no Outono que tudo começou. Enquanto as folhas caiam para crepitar embaixo de solas de sapatos, algo florescia. Em mim. Dentro de mim a Primavera começava a gritar. A traiçoeira Primavera, com as suas ervas daninhas crescendo no meu organismo; com os seus saudáveis cactos a espetar o meu músculo palpitante. Primavera, Outono. É tudo desconexo. É tudo sazonal. E entre os dois tem um Inverno; o meu Inverno. O meu inferno frio. Inferno gélido, onde aquilo que era fortíssimo e vigoroso vai se esmorecendo gradativamente até virar um imenso e intenso nada, cheio de perguntas a serem jogadas ao vento e nele flutuarem; girarem no ciclone da dúvida e voltarem renovadas, não como respostas, mas como outras perguntas. É sempre assim. O planeta continua com os seus giros malucos e minha cabeça vai acompanhando a rotação, mas no sentido oposto a tudo que é padronizado. O meu feeling, a minha predileção por algo que eu já sei que não vai dar certo e provavelmente vou me dar mal é encantador; eu me encanto com ele. É algo como ser um apicultor alérgico pirraçando a colméia mais agressiva de todas as colméias agressivas. O gosto pela dor. O gosto pela coceira que dura dias após as iniciais ferroadas. Onde cada esbarrão involuntário atiça uma dor nova, fruto do mesmo ataque. Sempre tem uma dor nova, diferente. É um prisma de agonia que vai girando e girando e girando e é sempre uma dor diferente que é gerada pela mesma instituição-causadora-de-dor. É uma delícia! Mas é algo sazonal, também. Uma hora isso acaba. Tudo passa, tudo acaba, tudo é findável, tudo tem um momento que se cristaliza em derradeiro; a única certeza é o fim. É o que eu sempre digo. O processo de inicialização que dará no processo de encerramento é tedioso; vazio. Uma certeza vazia de que não valeu a pena. E nunca vale. Nunca vale a pena. Paradigma idiota esse, de que tudo - ou quase tudo - tem que ter uma meta, um destino, um final; algo a ser alcançado e/ou galgado após percorrer os caminhos incertos e/ou lineares do sofrimento e/ou do prazer. Vale a pena durante o caminho. Tão somente durante. Quando o final é alcançado - seja ele bom ou ruim - ele é algo sem graça. Pérfido e avesso ao que cogitamos em nosso âmago. Gerador de repulsa e de remorsos. Catalisador da nossa capacidade de esforço; sim, é impressionante a impressão que se tem quando se olha para trás e se checa o que foi feito para causar uma impressão que não impressionou. Continua frio. O frio, frio, frio. Frio traz de volta tudo. O tudo que se transformou em nada. Um completo nada, cheio de tudo, que não tem nada à não ser tudo o que virou um nada cheio de tudo preenchido com nada. No Outono eu fui Primavera. No Inverno eu sou Outono. Na Primavera serei Inverno? No verão serei Primavera, novamente? É o fim dos tempos! E o planeta continua girando, girando, girando, girando, girando e eu sou aquela folha morta, seca, vermelha, rolando aos caprichos da brisa, incerta, indo e vindo, no vaivém oscilante da dúvida, só esperando, esperando, esperando. Esperando a sola do seu sapato encerrar o serviço que se iniciou com o seu – habitual, intrínseco e não tão casual, eu sempre soube - descaso.

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 31/07/2010
Código do texto: T2410190
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