Língua (portuguesa) e paladar: uma dupla receita
Língua e paladar: uma dupla receita
Conheço pouca gente que goste de choucroute (ou da sauerkraut dos alemães), ainda menos quem saiba o que é ou como é feita e nunca conheci ninguém que soubesse o nome em português desse prato oriundo, segundo se diz, da alternadamente francesa e alemã Alsácia. Penso, e por isso considero este texto um pensamento, como diriam os autores da canção a La Palisse, que esse conhecimento pode ser útil pelo menos aos poetas e aos donos de restaurantes sofisticados; aos poetas porque se incluírem sensações sápidas nos seus versos encontrarão rimas mais fáceis para o termo em português do que para o correspondente alemão ou francês e aos donos ou gerentes de restaurantes com ementas em mais do que uma língua porque se referirem esta especialidade gastronómica escusam de evidenciar ignorância da língua materna.
Tome-se então conhecimento de que em 1882 a Livraria Ferreira editava em Lisboa, sem mencionar o autor, um volume intitulado VIDA PRACTICA do qual consta a informação 1023 na página 161: “A versa-azeda ou choucroute é um alimento muito agradável, de mais fácil digestão do que as couves não preparadas, em razão da fermentação que se lhes faz soffrer. Tem mais a vantagem do preparo ser muito simples e pouco custoso”. Ver-se-á, pela transcrição da receita que adiante se faz, como o preparo é de facto simples – e sobretudo rápido.
É evidente que a palavra versa aqui referida tem o significado de couve mas já quase nunca lhe é atribuído esse sentido quando usada com tal grafia. Grafada como verça ainda aparece como sinónimo de couve (p. ex. na Enciclopédia Verbo editada pelo Público) mas é com a grafia de berça que ainda se usa muito em expressões do género: a minha prima veio lá das berças, para indicar que vem do meio das couves, do ambiente rural, como indica o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa. Assim sendo talvez mais modernamente se deva escrever berça-azeda reservando para os mais tradicionalistas a versa-azeda de 1882. Confesso que desconheço se os inefáveis autores do recente acordo ortográfico ou outros atrapalhadores profissionais se debruçaram sobre o tema. Se não se debruçaram que se debrucem e digam qualquer coisa.
Dito o que penso passo à transcrição da receita:
1024. As couves destinadas à versa-azeda devem ser repolhudas ou mesmo repolhos. Lavam-se com cuidado, tiram-se-lhe as folhas verdes e com uma faca bem afiada cortam-se em talhadas delgadas.
1025. Toma-se um barril bem limpo, ou, melhor ainda, novo, e n´este caso deixa-se ficar durante quinze dias com agua, que se renova diversas vezes a fim de lhe tirar o tannino. Depois despeja-se e secca-se.
1026. Cobre-se o fundo do barril com uma camada delgada de sal (de 5 a 6 milimetros), e estende-se uma camada de couve de cerca de 10 centimetros de espessura, na qual se espalha uma pequena porção de pimenta em grão, baga de zimbro e folhas de louro. Comprimem-se sem se quebrarem e cobrem-se novamente com uma camada de sal; depois colloca-se outra camada de couve e outra de sal, repetindo isto sucessivamente e comprimindo-as sempre até que o barril esteja a três quartos da sua altura. Colloca-se sobre as couves um pedaço de panno grosso e novo, sobre este uma tampa de madeira que entre livremente no barril e em cima da tampa uma pedra grande para comprimir as couves. Logo que a fermentação se effectua, a tampa desce e a agua sobrenada. É necessário tirar alguma agua, sem contudo deixar a tampa em secco. Póde comer-se passado um mez de fermentação, mas é muito melhor ao fim de dois mezes.
1027. Durante a fermentação a versa-azeda desenvolve um mau cheiro, que facilmente desapparece com a lavagem que se faz antes de coser as couves. O barril deve conservar-se em logar fresco e arejado. De cada vez que tirarmos as couves para coser devemos esvaziar a agua que cobre a tampa e lavar a linhagem, depois deitar-lhe agua fresca e recobrir tudo novamente.
Pareceu mais saboroso manter a grafia do texto de 1882 acabado de transcrever, confessando embora a incapacidade de detectar gralhas ou faltas de respeito às regras então vigentes.
Por pouco não me esqueci de uma utilidade, para as donas de casa, que outras receitas não têm: pode iniciar-se a confecção do pitéu e só depois fazer os convites, mesmo que estes requeiram alguma antecedência. Bom apetite!