Um Lance Bacana
Eu me sinto bem filósofo, mas falta conhecimento para se ter o quê filosofar. Só as mesmas teorias indo e vindo, girando e sendo transcritas da mesma forma, só que com palavras diferentes. Um amigo me falou brevemente sobre uma terapia doida onde você se senta de frente ao analista e atrás dele é uma parede de espelho. O seu interior vindo à tona com a ajuda de um especialista enquanto você se olha no espelho é algo forte - quem está preparado para andar pelos corredores de seus mais profundos medos e incertezas? É aquela história da frase do Oscar Wilde, sobre quanto mais olhamos para dentro do abismo, mais ele nos olha de volta. Como não tenho tempo e nem dinheiro pra fazer terapia, fico me olhando no reflexo do vidro do ônibus e me embolo no labirinto das minhas doideiras e inconstâncias onde sou um Rei megalomaníaco e um mendigo autodepreciativo ao mesmo tempo, mas sem a habilidosa condução dos pensamentos e sentimentos que um estudioso faz para nos ajudar. Mas vou me virando, me guiando na insegurança e um pouco curioso para saber onde esses estratagemas quiméricos resultarão.
Um casal do meu lado fala do jogo do Brasil de amanhã. Copa do Mundo. Um deles não ia trabalhar. Sexta-Feira e o mundo precisando deles para colocar um tijolo a mais numa construção, desentupir uma pia, fechar um acordo com o BNDES, trocar uma lâmpada, engraxar um sapato, parafusar uma roda, fechar uma torneira; o dono do motel precisando deles com tesão para poder lucrar e pagar a parcela do carro e um deles vai trabalhar e o outro não. Mas não é niilismo o que eu sinto vendo esse tipo de conversa - já que não sou fã de futebol e não dou a mínima pra Copa do Mundo, deve ser isso o que talvez pensem. Não, mas é algo realmente inefável o que o futebol brasileiro na Copa do Mundo consegue fazer com o nosso povo. No dia do jogo a minha cidade, que é o coração pulsante do País, praticamente pára; as avenidas ficam sem os seus carros atravancados e sem suas buzinas irritantes e as ruas ficam apinhadas - ou não - de gente com roupa verde e amarela. Chega a assustar. E rola uma tensão opressora no ar. Comentei com uma amiga que essa energia invisível embaralhada na atmosfera do Brasil se assemelha com a Genki Dama que o personagem Goku fazia no desenho Dragon Ball Z: com o corpo em frangalhos, sem energias e forças para vencer o inimigo e salvar a Terra, ele erguia as mãos para o alto e pedia para todos os seres vivos do planeta enviarem suas energias, um mínimo que fosse de energia. Então o desenho se desenrolava numa cena emocionante de coelhos de três olhos emanando uma espécie de pólen (a tal energia). E todos emanavam uma merreca de sua vitalidade para ajudar o Goku a salvar a Terra: eram focas, sequóias, cactos, lhamas, dinossauros, peixes, maçãs, minhocas, vermes, jacarés, pássaros, cachorros, ratos, putas e bêbados e diretores de banco e mendigos. Todos com sua pouca contribuição formavam uma bola de energia gigantesca que era capaz de derrotar o inimigo com seu imenso poder benevolente. É parece que é a mesma coisa: os potiguares, os paulistas, os curitibanos, os londrinenses, os são joanenses, os acreanos, os catarinenses e, enfim, todos os enses e istas e anos possíveis do Oiapoque ao Chuí mandando suas melhores vibrações para aqueles rapazes trazerem o troféu da mais grandiosa competição mundial para o Brasil.
Eu não gosto de futebol, mas deixo aqui minha confissão: é uma coisa linda de se ver.
Algo que se assemelha à Copa nesse quesito de parecer mover o País, infelizmente, é aquele reality show da televisão. Disso sim eu não gosto e sou totalmente hostil quando o assunto é citado perto de mim. Mas eu tentei ver essa porcaria do outro lado. Qual outro lado? É que eu tento entender quem assiste e VIVE o que acontece naqueles “confinamentos” e olha, não consigo entender não, viu!? As pessoas que estão de fora se identificam com as que estão lá dentro, torcem, choram, gastam horas com o assunto e gastam dinheiro ligando e votando e participando e se inscrevem e mandam vídeos e fazem comunidades no Orkut, montam fãs-clube de seres que até então eram desconhecidos de todos fazem site e discutem e defendem como se tivesse falando do parente mais próximo e querido da família. É esse lado que eu não entendo e que me irrita e me mantém afastado. Mas continuando nesse assunto, vendo do outro lado. Aquele outro lado que fiz a pergunta algumas linhas acima. Do lado de dentro. Sim, me imaginei sendo convidado para participar de uma ladainha dessas. O ônibus fincado no trânsito e essa idéia me ocorreu:
Será que eu trocaria essa minha hostilidade por uma estada naquela casa?
Será que eu trocaria a minha liberdade por aquele confinamento?
Será que eu trocaria a paz do meu anonimato pelas conseqüências que uma desastrosa ou triunfal repentina ascensão que a radiodifusão pode gerar?
E vocês, trocariam?
Parei e fiquei pensando. Uma manhã linda, um ar gostoso – apesar dos quilômetros de carros parando soltando fumaça – de se respirar. Um céu de um azul encantador. Um mundo cheio de possibilidades. Eu poderia estar numa praia sentado ao lado de um labrador ou de uma bela mulher. Eu poderia estar deitado numa rede lendo o jornal. Eu poderia estar lavando o carro, limpando uma gaiola, ajeitando umas varas de pescar em cima de um carro. Poderia estar na internet aprendendo como fazer arroz ou feijão. Poderia estar flertando. Poderia estar deitado na minha cama, rolando, pulando de sonho em sonho e acordando e olhando o relógio e retornando ao sono profundo e livre de preocupações. Eu poderia fazer mil coisas, mas não, tinha que estar preso no engarrafamento, atrasado, com uma advertência verbal me esperando. Eu penso assim, no que poderia ficar melhor, como podem ver. Não penso, por exemplo, “Poxa, pelo menos eu não estou deitado com tubos enfiados no braço me alimentando, não vou ser operado pela enésima vez com risco de morte e tenho um lar para dormir”. Não, disso eu já sei. E quem quer ficar pensando no pior? Eu penso no meu pior procurando o meu melhor e não no pior dos outros para ver o que eu tenho de melhor. É questão de opinião. É um lance idiossincrático. Mas então, com todo o meu exposto – espero que vocês tenham feito a exposição de seus próprios “problemas” para acompanhar meu raciocínio – será que eu – vocês – aceitaria – aceitariam – um convite para participar desses disparates públicos?
A minha resposta é sim. Eu seria trancafiado num paraíso. Casa confortável, bonita. Um contrato com uns bons reais, com eu me dando bem ou não. Piscina e academia. Festinha todos os dias. Desafios onde eu ganho carro ou mais uma semana na casa – o que significa mais reais no bolso e talvez um carro mais potente. E com certeza um monte de futuras capas de Playboy. Que mais eu haveria de querer, me diga? Ficar isolado do trânsito, dos assaltos, dos perigos do mundão. Ser isolado das dívidas e de chefes no trabalho. Ficaria sem ouvir aqueles carros que param na porta da faculdade e propagam o mau gosto musical para quem quiser e para quem não quer ouvir. A minha única preocupação seria malhar, nadar, ganhar mais dinheiro, pegar alguma gostosa, criar uma ou outra intriga pra não passar despercebido pelos olhos do alienado público e me manter firme e forte na disputa pelas centenas de milhares de reais. Cara, é só coisa a ganhar. Só coisa fútil, mas de um jeito ou de outro só vai me fazer sair ganhando bem mais do que eu ganhava antes de entrar na casa. Não só em dinheiro, mas em muita coisa. Ou não. E o lado ruim de ficar lá? Com pessoas novas, estranhas, histriônicas, dissimuladas, sentimentais, rancorosas, mesquinhas, ardilosas. Seria um sufoco, pois tenho uma certa dificuldade para me socializar e com certeza terão pessoas efusivas lá para me enervar e despertar minha impaciência. E se eu não me desse bem com alguma mulher? Visse todo mundo formando casalzinho e eu lá chupando um dedo com um gay de um lado e uma velha do outro? E a dificuldade para ir ao banheiro? Será que rola dar uma barrigada tranqüilamente lá? E pra socar uma bronha, como fica? E por trás daqueles espelhos têm câmeras, né? E como vou exaltar meu narcisismo sabendo que o quinto maior país do planeta inteiro está me olhando? Não vou poder mais espremer meus cravos e espinhas, é isso? Não vou poder mais falar comigo mesmo quando eu estiver deprimido ou irascível? Será que de repente, na segunda ou terceira semana um psiquiatra entrará com seus soldados travestidos de branco e me levarão embora dentro de uma camisa de força? E minha inspiração para escrever? Será que fluiria sob os auspícios da pressão do luxuoso confinamento? Mas cara, só de pensar que eu não teria que acordar no meio de um sonho idílico com um despertador irritante, empurrar um café da manhã insosso goela abaixo, evacuar, fazer a barba, tomar banho, me enxugar, me trocar, me perfumar, me preparar para um dia sem propósito igual ao anterior; com um presente desesperador e confuso e com um futuro previsível e desalentador, eu sorriria aos céus e agradeceria mil vezes por dia porque seria uma quebra de rotina e tanto e ter a rotina quebrada é uma coisa pela qual eu sempre estou buscando a marreta específica, para tal finalidade. Mas sim, a inspiração fluiria. Pois eu estaria preso junto com diversos tipos de gente: talvez médicos e bombeiros, policiais e donas-de-casa, veterinários e funcionários públicos, playboys e patricinhas, provincianos ignorantes e professores de pós-graduação. Misantropos e licantropos. Esquizofrênicos e soberbos. Avoados e humildes. Mulheres burras e ambiciosas e mulheres inteligentes e desprovidas de ambição. Gente materialista, gente conservadora, ativistas pelo meio ambiente e fumantes cancerosos. É, creio que ficar sem escrever eu não ficaria. O combustível para que os meus dedos se movimentem por teclas com as letras apagadas ou deslizem por um bloco de notas de papel reciclado estará todo lá: pessoas, com suas particularidades e loucuras e medos e amores e desamores e ciúmes e egoísmos e alegrias e mágoas e explosões sentimentais de todos os tipos. Seria de grande valia, seria um grande arquivamento empírico para o meu cérebro.
Será que as pessoas que se reúnem na sala no horário desses programas e babam na frente da televisão conseguem absorver da evidência medíocre toda essa subjetividade que eu absorvi da minha evidente confusão sobre o assunto? Se sim, estou no meio de um grande número de mentirosos falam que eu sou um bom observador e sou detalhista com coisas que passam despercebidas no dia-a-dia de todos, por que, olha, partindo desse ponto de vista eu estou alguns minutos atrasado na percepção das coisas.
Me pergunto de novo: será que eu aceitaria o convite para participar desse bunda-lê-lê?
O ônibus faz a última curva da entrada do Metrô Belém, eu me dirijo até a escada, peço licença para descer e caio no mundo já me esquecendo de tal pergunto e de tudo o que eu refleti durante o trajeto do ônibus. É assim também com as pessoas que fazem terapia: assim que ela saem do consultório se esquecem de tudo que foi tratado lá dentro?
Bato o meu ponto e fico ansioso pela segunda terapia do dia, a da volta. Qual será a pauta que o meu reflexo vai propor, hein?