BOM EM QUALQUER ÉPOCA - O NOVO HOMEM

Eu não costumo postar textos de outros autores aqui. Mas há tanta produção literária por esse mundão, tanta coisa que tanta gente tem acesso e muito mais coisa que tanta gente não tem que pelo bem do conhecimento humano e da literatura, acho que toda oportunidade que tivermos para aumentar a visibilidade de textos bons não pode ser perdida. Selecionei alguns que acho que precisam de quando em vez ser divulgados pelas suas qualidades inumeráveis. É só mais uma forma de dar ainda mais vida à sua imortalidade. Só lendo para qualificar. E isso cabe ao leitor.

O NOVO HOMEM

O homem será feito

em laboratório.

Será tão perfeito

como no antigório.

Rirá como gente,

beberá cerveja

deliciadamente.

Caçará narceja

e bicho do mato.

Jogará no bicho,

tirará retrato

com o maior capricho.

Usará bermuda

e gola roulée.

Queimará arruda

indo ao canjerê,

e do não-objeto

fará escultura.

Será neoconcreto

se houver censura.

Ganhará dinheiro

e muitos diplomas,

fino cavalheiro

em noventa idiomas.

Chegará a Marte

em seu cavalinho

de ir a toda parte

mesmo sem caminho.

O homem será feito

em laboratório,

muito mais perfeito

do que no antigório.

Dispensa-se amor,

ternura ou desejo.

Seja como flor

(até num bocejo)

salta da retorta

um senhor garoto.

Vai abrindo a porta

com riso maroto:

"Nove meses, eu?

Nem nove minutos."

Quem já conheceu

melhores produtos?

A dor não preside

sua gestação.

Seu nascer elide

o sonho e a aflição.

Nascerá bonito?

Corpo bem talhado?

Claro: não é mito,

é planificado.

Nele, tudo exato,

medido, bem-posto:

o justo formato,

o standard do rosto.

Duzentos modelos,

todos atraentes.

(Escolher, ao vê-los,

nossos descendentes.)

Quer um sábio? Peça.

Ministro? Encomende.

Uma ficha impressa

a todos atende.

Perdão: acabou-se

a época dos pais.

Quem comia doce

já não come mais.

Não chame de filho

este ser diverso

que pisa o ladrilho

de outro universo.

Sua independência

é total: sem marca

de família, vence

a lei do patriarca.

Liberto da herança

de sangue ou de afeto,

desconhece a aliança

de avô com seu neto.

Pai: macromolécula;

mãe: tubo de ensaio

e, per omnia secula,

livre, papagaio,

sem memória e sexo,

feliz, por que não?

pois rompeu o nexo

da velha Criação,

eis que o homem feito

em laboratório

sem qualquer defeito

como no antigório,

acabou com o Homem.

Bem feito.

Carlos Drummond de Andrade

Esta crônica/poema foi escrita em 1967, numa coluna que o poeta tinha no Jornal do Brasil (RJ)

josé cláudio Cacá
Enviado por josé cláudio Cacá em 13/06/2010
Código do texto: T2316874
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.