[Um Louco a Ler Dostoievsky]
A ler Dostoievsky e a pensar: como é possível... romances assim... oras, sou apenas uma alma bêbada, tonta... encanta-me alguma semelhança que encontro naquelas almas decadentes, perdidas no vício, no jogo, com as almas deste meu tempo, e de todos os tempos. Encantam-me as mulheres ferinas, espirituosas, dominadoras, e os homens frouxos... grandes almas, grandes vícios — disseram — mas eu tenho uma alma pequena... e tenho? Nem sei se tenho alma... tenho não.
Revisito a rua dos sonhos, aquela que me aparece na paisagem da mente. Um carroceiro solitário desce essa rua de pedras que passa pelo meu espírito. A sua égua magra trota num ritmo constante. Vejo-os passar pelas frestas da janela, passam pelo meu tempo. Quebram o silêncio atarracado no dorso da noite, sem cuidar que um louco, preso na cela de seu quarto de dormir, os ouve passar. Um louco que lê Dostoievsky — sem ficar mais louco ainda! Um ser dado a escavar os subterrâneos da alma alheia — cuidado comigo — encontrar-me pode não fazer bem aos desavisados. Escavar... para quê? Só por eu ser doente dos olhos... Ah, isto não justifica não!
É madrugada... e não disponho de uma vodka no freezer — que pobre sou; também, quem compraria os meus textos, esses meus nadas? Nos trópicos, estão à venda, e a bom preço, a honra, a mãe, as filhas, a pátria... Ainda bem que Deus não existe. Vou passar a escrever em inglês... quem sabe...
[Penas do desterro, 05 de junho de 2010]