Quando fala a Saudade

Neste dia, toma, receba estas palavras que deixo com alguma cautela. Fosse o amor, não pensaria duas vezes, ou então, fosse o rancor, a conduta aqui seria pesada e implacável. No entanto, sou leve feito lembrança, vaporosa como estória, uma série de convites repentinos a longas caminhadas pelo Vale, onde não se pode ir acompanhado. Sou imperativa no imaginário do homem.

Uma língua em especial possui um nome que considero bastante agradável sonoramente, em uma tentativa de me identificar. Chamam-me Saudade. Não, solidão é um lugar, não é a mesma coisa. Quando me chamam por "solidão", estão a me nomear por referência ao lugar onde acabam todos aqueles que cruzam meu caminho: o Vale da Solidão. Não acho nada agradável, diga-se de passagem. Nunca gostei destes hábitos políticos de arrebanhamento, adoram soltar que o "trabalhador", o "operário", ok, tudo bem, temos uma noção do que isso significa, mas esse jargão já não carrega mais o desprezo pelas individualidades que o sentido de coletividade, de fato? Eu que não apostaria minhas fichas nos vermelhos.

Os homens me conheceram quando pela primeira vez a Morte os visitou, pra que tivessem consciência do que eram. Uma noite sem estrelas, pouco vento circulando, o mato estava calado enquanto ela ia na direção deles. Alta, negra, os olhos grandes e impassíveis, braços e pernas longilíneos e um pescoço admirável.

A grande Avó dormia, aguardando o juízo que desconfiava existir, mas que não podia compreender, até aquele momento. Por ser mais sábia que os demais, ela sentiu chegar a morte antes que qualquer um pudesse percebê-la. Começou a falar aos filhos sobre o que percebia, e a Morte, sem poder lhe interromper, deixava que dela falassem o quanto lhes fosse prazeiroso. A grande Avó falava do vazio, do medo e da dor. E por que sentia dores? O corpo não funcionava mais, mas era só isso?

Quando me viu, lembro, duas gordas lágrimas escorreram de seus olhos enrugados. Minha aparência jovem e frágil, meu jeito simples de aparecer, acho que a inocência que cultivo nas minhas expressões, principalmente, levou a velha mulher a um copioso choro. Quando expirou, tomada à Morte pela mão, soluçava ainda no reflexo de vida. A Negra me olhou de soslaio, levando a Avó pelos ombros, pra que eu soubesse que agora era tempo de eles me conhecerem, os demais.

Enquanto ele sacudia o corpo sem vida, apresentei-me a todos. Primeiro, não pude me fazer entender direito. Estavam prestando a atenção nos gestos débeis do homem que não cria que a Morte havia cumprido seu ato de benevolência. Tive de falar mais alto e lhes imprimi as minhas letras, meu discurso, cravei-lhes a poesia infinita que os fez cair de joelhos, todos diante da força que já sustentava.

Passei a viver em suas vidas, quando se deparam com o vazio, quando estão diante do espelho olhando a si mesmos, apareço-lhes como um rosto familiar que vem somar-se ao retrato. Desde a primeira infância, tenho certeza, até os últimos instantes de vida, sou eu aquela que os homens mais temem como companhia: porque meu rosto é o mais belo de todos, mas meu corpo é intocável. Eu não sacio, sou a própria fome. No choro da criança que desconfia da viagem sem volta que fez a avó, já tão velhinha, pobre coitada, tanto quanto no suspiro calado, que o jovem larga ao acaso, vendo as ondas trazerem memórias de um rosto moreno. Também é meu trabalho quando o velho, deitado, alisa o gato durante o dia inteiro, sem que possa contribuir mais, paralisado pelo tempo que dedica a conhecer o Vale.

Os caminhos são muito bonitos, todos personalizados, e o visitante não tem um tempo fixo para desfrutar dos prazeres desta caminhada. Pode ficar o quanto quiser, ir até os pontos mais elevados de suas lembranças, experimentar êxtases que somente a falta pode proporcionar. A abstinência, uma das minhas roupas favoritas, castiga o homem a níveis que variam bastante de acordo com o propósito. Tem gente que fica louca de desejo e se baba toda, atira o corpo ao chão em protesto, toda uma sorte de espetáculos pra evitar encarar de fato a minha postura. De noite, minha crueldade é absurda.

É claro que, mesmo sendo quem sou, vale também a máxima de que a transcendência tudo conquista. Alguns, devo dizer, não muitos, principalmente não nos países em que o romantismo é parte da cultura fundamental de cada indivíduo, bem, uns poucos conseguem desprezar as minhas investidas e derramar algumas poucas lágrimas sem danação. Pessoas que abandonam a necessidade de possuir os velhos tempos, de sentir na carne os velhos prazeres, homens e mulheres que se desprendem do que a memória pode ofertar, em favor de uma vida mais cômoda, acabam por não se importar com a minha presença. Sobre eles, no entanto, meu peso é terrível. Não duvide.

Toda beleza não pode existir para sempre. É um lugar terrível, este Para Sempre. Dizem que existe nas altas esferas, mas o homem insiste em procurar por este el dourado e não aceita que se diga, que tolice!, não, jamais, pra ele é ofensa maior falar em coisas inatingíveis. No afã de possuir, atira-se mordaz sobre tudo que vê, ultrapassa obstáculos, e cada vez mais se enche de finitudes que vão lhe trazer ao meu regato, onde no espelho d'água a vida passa afoita. Sou aquela que inspira o forte, que tortura o fraco. Sou quem fica, quando se vai, e a que vai, quando se torna, e principalmente, a que volta pra visitar depois que é chegada a hora.

Avati
Enviado por Avati em 19/04/2010
Reeditado em 19/04/2010
Código do texto: T2206551
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