A Paixão é uma Droga (Dezembro de 2005)

Vez ou outra faz bem observar os movimentos intermináveis da natureza que bailam e resbalam entre nós no dia a dia, enquanto estamos desesperados, cada vez mais subemersos na selva de pedras que nos construímos. Sou a favor do Discovery Channel, National Geographic e canais afim como obrigatoriedade a menores de dez anos. Um programa por dia, pelo menos, a criança deve se acostumar a observar o mundo animal mesmo que dentro de sua própria residência, mesmo que protegido pelas graças do modernismo. Na casa onde moro, por exemplo, tenho o privilégio de observar insetos variados em meu quintal, vivendo e produzindo em suas infra-estruturas soberbas. Em ocasiões raras encontro um guaxini soturno de sagacidade ímpar, nunca foi pego, só é visto quando quer. Além disso, sempre estamos muito bem acompanhados de esquilos. Roedores... Vejo-os saltitar de galho em galho, colher as sementes e sejá lá o que encontrarem para alimentar-se e as preparando, cavando com seus dentes infinitos, furtando-se de invasões humanas ao mais singelo passo em falso. Não posso deixar de reparar na similaridade que existe entre o reino animal e o mundo humano. Isso sem contar nos cachorros, gatos, e outros bichinhos de estimação que, sem dúvida alguma, passam por nós a nós e nós por eles a eles.

Pois, animais, de tão similares, são iguais. Esta não é a novidade do dia. Reparar nas belezas da natureza e sua lógica nebulosa na mais simples formatação do universo que nos abriga, significa perceber que fazemos parte desse ‘tudo’, nem melhores nem piores do que qualquer outro menos significante detalhe formado. Somos como micróbios d’um corpo chamado Planeta Terra. Micróbios, e muitos de nós causamos mais sérias infecções e deformidades, enquanto outros procuram, esqualidamente, criar suficientes anticorpos. Como animais, todos compartilhamos processos similares, mesmo que de mecanismos distintos.

Há não muito tempo, aprendi que há uma espécie primata a utilizar do veneno protetor expelido por uma espécie de centopéia como repelente de insetos indesejados. Este repelente, contudo, possui efeito alucinógeno. Os primatas esfregam a centopéia em seus pêlos por todo o corpo, pelo rosto, pelas costas, pela cauda, e repentinamente seus olhos se esbugalham, brilham, e os bichos ficam soltos, completamente alterados, babando, rindo, chorando, saltitando, até que o efeito do alucinógeno passe e logrem voltar ao estado normal. A maior curiosidade é que, para tal, não matam as centopéias, apenas usam o veneno expelido pelo ‘medo’ (mecanismo de defesa primitivo) como repelente e alucinógeno. Relações assim são até comuns na natureza, inclusive na raça humana. Na Inglaterra, à época, era muito comum usar do mesmo veneno protetor, mas por sua vez, dos sapos a habitar as respectivas lagoas e brejos das proximidades. Os estudantes nas universidades, tinham o costume de colher os sapos e, sem ressentimento ou nojo algum, lambiam seu dorso até que o efeito da droga os tirasse da órbita mental e os lançasse a mundos desconhecidos, os mundos desconhecidos da inconsciência. Com ‘medo’, o sapo usa seu mecanismo de defesa primitivo, e seres humanos se utilizam do mesmo para bens um tanto quanto particulares.

Animais, como seres humanos, não só usam drogas, mas também tem a mesma capacidade física e psíquica de se viciar. Em ratos de laboratório é comum testar justamente os efeitos físicos e psíquicos das mesmas drogas usadas por seres humanos corriqueiramente, e no caso das drogas ilícitas à sociedade humana, os efeitos são similares senão proporcionalmente idênticos. Não menciono fontes aqui, pois este não é um documento científico. Apenas noto, notando e reparando natureza afora, quão pouco nos falta a estar em paz e conformismo com nossa existência sem a necessidade do narcisismo ostentado por nossa torpe espécie de precisar inventar fórmulas que nos consolam do não-saber de onde viemos e para onde vamos. Não precisamos ser melhores, muito menos mais poderosos e enquanto mantivermos esta guerra contra aqueles que nos complementam, outros elementos essencias do universo que, pateticamente, ainda nos abriga, haverá apenas destruição, caos e desequilibrio.

Há, todavia, mais um fator peculiar na comparação entre seres humanos e animais no que diz respeito às drogas e ao vício, tanto físico quanto psíquico. Em primeiro lugar, não me espanto ao saber que animais também tem seu psíquico. Espanto-me ao saber que animais também se apaixonam! E o que uma coisa tem a ver com a outra? A mesma substância responsável pelo vício físico e estimulante ao vício psíquico é responsável também pelo sentimento que denominamos paixão, que rima com palavras mais lindas e tênues de dicionários cosmopolitas, qualidade sobre a qual há mais livros escritos do que sobre qualquer outro assunto, inclusive sobre religião. A dopamina, substância liberada e ansiada pelo cérebro, ao oferecer um bem estar incondicional, é também liberada e capturada em diversas expressões corporais voluntárias ou incontroláveis. O cheiro, por exemplo, pode fazer com que nosso corpo libere suficiente dopamina e bem estar a causar uma paixão. Mais adiante, o que descobriram recentemente segundo a revista Nature Neuroscience, é que o arganaz-do-campo, um tipo de roedor, desses que sempre observo passeando pelo cercado de minha casa, libera a dopamina após o ato do acasalamento, o que ocorre com seres humanos do mesmo exato modo!

Os mistérios da paixão (nem falo sobre os mistérios do amor, precisaria escrever um livro caso quisesse comentar superfluamente a respeito) não podiam ser comparados a algo melhor do que a droga. Tão poderoso é este sentimento, que nos remete a parâmetros e níveis de prazer além do que simplesmente nos afeta e pode ser sentido a parte de nosso organismo. Um prazer mais intrínseco e perverso do que o mero orgasmo, a sensação inigualável de pertencer e ter pertencido algo ao qual nem cabe posse, mas acaba possuído e possuindo como que por inércia sobrenatural. Enquanto primatas usam centopéias e estudantes ingleses usam sapos, a dopamina liberada a causar tamanho prazer não é necessária ou possível, em todo caso, abusando de seres de espécies diferentes e usando o veneno expelido por seus ‘medos’. Como qualquer outro animal, tão básico é o tema, é apenas necessário estar perto de alguém que nos cause o aroma, a sensação, o deleite, o regozijo, a pureza dos movimentos em que se ampara o corpo impotetente perante os prazeres da dopamina. O vício está selado, e como em todo e qualquer outro, o viciado se vê obrigado intrepidamente a doar-se por inteiro, a sacrificar a própria estrutura de sua existência para o bem deste inescrupuloso prazer. Como em qualquer outro vício, há abstinência, há insanidade, há delirium tremens... Infelizmente, nem todo drogado encontra sua cura, e mais vezes do que gostaria, a droga mata tanto por sobredose como por abuso sem costume. Além disso, uma vez que o prazer é inigualável a qualquer outro dentre as outras inúmeras experiências em nossa vida, a mesma vida sem a repetição deste prazer parece perder o sentido, tê-lo distorcido entre risos e soluços insólitos, tão sórdidos com’uma alucinação psicótica. E, como com qualquer droga, a paixão é dona de natureza ambígua e não pode ser subjugada ou conceituada simploriamente.

Meu conselho, enfim, apenas é: Se for pra usar alguma droga, use dos venenos da paixão, acolha-se vivo na solidão, e reavive sempre as memórias mais aprazíveis de seu coração... Como um roedor... Como qualquer outro animal.

RF

O Intenso
Enviado por O Intenso em 16/08/2006
Código do texto: T217963