Não estou lá
Algum dia desses não vou mais sair da cama. Todo desconforto começa com o de se manter longe de desconfortos ainda mais intensos. Se me levanto hoje, é porque meu corpo precisa aliviar o desconforto de ficar deitado por tanto tempo, mas minha mente jamais daria esse comando por decisão. Escravo do conforto e da preguiça, minhas pernas andam sozinhas. Sinceramente, não sinto qualquer entusiasmo em ir prá lá ou pra cá. Não há nada em mim lá que já não exista em mim aqui. Mesmo se houvesse, eu poderia ficar lá e ter algo que não tenha aqui, ou permanecer como estou, aqui em minha cama. Ouvi falar que lá eu poderia ter bons momentos. Já fui lá. Meus bons momentos foram envenenados pelo entendimento de que iriam acabar em breve, e que a única coisa definitiva é de que eu iria limpar meu rabo e escovar meus dentes por mais tempo que poderia imaginar.
Receberia uma dose de entusiasmo se houvesse algum motivo para o meu nascimento? De que me serviria obter resposta a qualquer pergunta? Que é a curiosidade além de uma distração à convivência com seres como nós, que temos pensamento abstrato? Temos apreço pelos animais porque eles nos mostram que viver sem intenções, sem dúvidas e sem questionamento, sem, sem, sem, sem nada além de conhecimento intuitivo e espontâneo parece mais agradável do que pensar para sobreviver e viver a pensar.
Meu único sentimento é de espanto, quando vejo pessoas que também não escolheram nascer, soltarem ao ar essa máxima: “a vida é uma escolha”. A vida não é uma escolha. Você escolhe um carro, uma casa, uma trepada. Se tivéssemos uma única escolha, supriríamos todas as nossas necessidades de uma vez e da forma mais intensa. Tão intensa quanto um tiro. Tão intensa e instantânea quanto um tiro na cabeça. A morte é uma escolha.