confissões
 
 
 
                                             heróis # 2
 
 
     Minha família se mudou para Tremembé, cidade próxima, uns 15 quilômetros, a Taubaté, lá por volta de 1986, estava, então, com 10 anos de idade. Com essa idade ainda estava na terceira série do primário, o que hoje seria o quarto ano do ensino fundamental, pois havia cursado o pré primário duas vezes, por motivos que explicarei em outra ocasião. Da segunda vez que cursei o pré primário até a quarta série, fui transferido de escola pelo menos uma vez por ano, por que meu pai precisava procurar melhores oportunidades de trabalho, quando cheguei a Tremembé, em setembro, acho, já era a segunda transferência aquele ano - de Peruíbe para Osasco, no primeiro semestre e de Osasco para Tremembé, no segundo. Quando cheguei à escola em que fora matriculado ao chegar a cidade, tive a mesma má impressão que tive quando cursei o pré primário pela primeira vez - este é só um dos motivos - só que desta vez muito mais forte: nunca havia visto tantas crianças, tão pobres e tão carentes antes, não só de bens materiais ou sociais, mas também de senso afetivo e simbólico. Como minha irmã, um ano mais nova do que eu, era muito mais esperta, desinibida e articulada do que eu - eis o motivo por que consegui terminar o pré primário, a segunda vez que o cursei, e avançar até o segundo ano do colegial, hoje, ensino médio, sem repetir uma única vez e sempre com notas boas: cursamos a mesma turma desde então -, me aproveitei dela, mais uma vez, para me enturmar, como se ela fosse minha fonte de propaganda e confiabilidade, apesar de nada estar me agradando ali; mas era preciso diluir-se.
     Ainda na primeira semana, a professora, não me lembro uma letra de seu nome, mas acho que todas as minhas professoras do primário se chamavam Cidinha, ou pelo menos uma delas deve ter tido este nome, pediu a classe, me incluindo nela, que fizesse uma redação com tema livre: antiga moda em escolas públicas do estado de São Paulo, que, segundo as autoridades pedagógicas, seria um ótimo instrumento de avaliação de aprendizagem e assimilação da língua portuguesa, além de estimular o desenvolvimento da abstração e da argumentação, mas - não conte esse segredo a ninguém - hoje, como professor, uso quando, em casos extremos, não tenho condições de preparar ou aplicar aulas. Essa redação, ainda me lembro do título, que era o nome de um dos personagens, que também era personagem de um famoso desenho animado americano: Cobra Kan, só não me lembro do tema nem do desenvolvimento da trama, apesar de gostar muito de inventar estórias desde muito cedo, algumas eu escrevia, outras eu ia inventando e encenado automaticamente, não me lembro da maioria delas, não guardei nenhuma, mas me lembro de muitos dos personagens, inventados ou emprestados. Essa redação agradou por demais a Dona Cidinha, tanto que, no dia seguinte, ela elegeu as três melhores para serem lidas por elas perante a classe, e com suspense e tudo, pra saber quem teria sido escolhido melhor redator, claro que eu esperava que a minha fosse, também, escolhida, afinal, como toda criança normal, também tinha minha vaidade, mas, mesmo assim, fiquei surpreso quando ela disse o nome de minha redação, e não em terceiro ou em segundo lugar, mais em primeiro. Era a glória, na primeira semana, condecorado e admirado pelos colegas, ou melhor, pelas colegas, os colegas não admiravam, respeitavam - coisa muito nobre naqueles tempos, que não vejo mais hoje, hoje entre os garotos só vejo inveja ou despeito em relação às habilidades individuais -, apenas um dos colegas, me lembro até de seu nome, um antagonista a gente nunca esquece, Alexandre de Lima - coincidência onomástica, e houveram muitas naqueles tempos - que passou a competir comigo desde então, a cada vez que a Cidinha elogiava uma de suas redações, eu era a primeira pessoa a quem ele vinha mostrar a parabenização documentada em vermelho no seu escrito. Como ele percebia que eu não me importava muito com isso, nem com ele, então  apelava pra violência física, aí então ele conseguia, não só me vencer, mas, também, que todos prestassem atenção nele, porém, esse assédio não durou muito, pois, assim como seu irmão e outros membros da família, ele tinha envolvimento com drogas, e logo foi convidado a se retirar da escola, toda sua família teve o mesmo destino, com relação à cidade, mais tarde. Por causa dessa violência me fechei de novo - vocês podem notar que não falei mais de minha irmã, isso porque o sucesso repentino me fez ter coragem de deixar ela de lado, com seu grupo de amigos, e buscar o meu, afinal, ela estava segura, era muito mais independente e segura do que eu - passei a não acompanhar mais aquela turma, mesmo ficando sozinho, nunca tive problemas em estar sozinho, então saquei meu Transformer do bolso - alguém se lembra disso? - e passei a brincar com ele, como se eu mesmo o fosse - naquele tempo andava sempre com um brinquedo, hoje ando sempre com um livro -, então apareceu um garoto, da quarta série, muito magro e mais baixo que eu um pouco - mais tarde vim a saber que era três anos mais velho que eu, isso significava que havia sido reprovado pelo menos mais duas vezes a mais do que eu, por não ter conseguido aprender a ler no tempo correto -, perguntou se podia ver meu brinquedo, e, como já estava um tanto embrutecido pelos desencontros daquela semana, disse não. Curto e seco: "Não". Ele não demonstrou chateação, pois o que pretendia mesmo era fazer amizade e não ver o brinquedo, virou-se e foi embora. Depois disso, nos encontramos muitas vezes pelo bairro, em quermesses, gincanas escolares, peladas... mas nunca nos falamos, apesar de trocarmos olhares, do tipo que se vê entre personagens de filmes de Western, sempre achei que seria mais um de meus inimigos. Até que chegou o encontro definitivo; aconteceu que minha irmã - de novo ela - se matriculou num curso dominical, coisa que já abominava desde então, e ficou amiga, como sempre, da turma da igreja, dessa turma também, fazia parte o garoto magro e mirrado, a quem havia negado amizade. Nessa época, já com doze anos, estava, desde a quarta série, matriculado em uma escola mais bem conceituada no centro da cidade. O garoto, que era o único em um grupo de umas cinco meninas, chegou, com as novas amigas de minha irmã, até a de minha casa, trazendo um violão guardado em uma capa própria para isto, me olhou da mesma maneira que me olhava quando nos cruzávamos pelo bairro, sentou na calçada, sacou sua arma da sacola, e começou a se entreter com aquele brinquedo, que era muito melhor que o meu, e que, também, agradava as meninas ali perto, até mais do que minhas redações ou versos - também os fazia naquele tempo, para ganhar beijos. Depois desse dia, viramos amigos do peito, amigos de troca, amigos de admiração mútua; tanta era a admiração, que cheguei a aprender a tocar alguns instrumentos - lógico que já gostava muito de música: fazia versos, porque pareciam canções - e pensei até em viver de música, por boa parte de minha adolescência e juventude, na verdade, a cada vez que pego num violão pra tocar, penso naquela competição sadia que havia entre nós, competição que nos fez crescer como músicos e pessoas. Hoje, o tempo e o espaço nos afastaram, mas, se  eu sei reconhecer uma amizade verdadeira, e cultivá-la, foi por ter conhecido o Leandro, mas ainda, às vezes, faço um certo charminho quando percebo uma amizade que desponta, só pra ter certeza se vale a pena.
cimatti
Enviado por cimatti em 27/01/2010
Reeditado em 27/01/2010
Código do texto: T2053244
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