confissões
 
 
HERÓIS # 1
 
 
 
 
                Nasci na cidade São Paulo em 1976. Por volta de 1984, quando tinha oito anos, minha família morava em um bairro chamado Butantã. Num daqueles muitos dias ensolarados - engraçado, mas só me lembro de dias ensolarados nessa época - meu pai estacionou um Chevete Branco e acionou a buzina, que mais parecia um berro de cabra - a buzina estava rachada. Não me lembro o que fazia antes disso, antes dessa chegada triunfal, só me lembro de ser pego de surpresa nesse momento, não pela chegada do velho, que ainda era moço, pois ele sempre chegava à mesma hora todos os dias, mas pela alegria espontânea que tomou conta de mim naquele momento, alegria que, na verdade, irradiava dele. Corri pra fora e, antes que ele alcançasse o portão, para abri-lo, o fiz e tentei alcançar seu pescoço com um salto, tentando abraçá-lo, coisa que não consegui, pois não tinha estatura nem força suficiente: ambos tivemos que nos conformar com um abraço a altura da cintura. Ele ficou espantadíssimo com minha atitude insólita, percebi isso no seu sorriso, na sua voz e no seu toque. Depois dessa breve eternidade, desci daquele monte e o ajudei a abrir o portão, pra que pudesse por o carro dentro da garagem, enquanto ele estacionava, saía pela porta da sala, a pessoa a quem ele mais queria agradar, minha mãe, então sua felicidade inicial voltou. Ele já se acostumara com o desdém dela pelos agrados materiais e comuns com que ele tentava satisfazê-la - talvez do que ele realmente gostassea fosse de conquistar, de tentar convencer alguém de que suas idéias eram boas, coisa quase impossível pra quem escolhera se casar com uma mulher prática e com os pés no chão. Assim que ele saiu do carro, passou a querer mostrar o que havia conseguido, enquanto ela olhava de fora, eu aproveitei pra entrar, sentar no banco do motorista, pegar no volante e movimentá-lo de um lado para o outro, como faz toda criança, fingindo estar em alta velocidade em uma estrada qualquer. Nesse momento, só me lembro de minha mãe dizendo: "Como você vai pagar isso?" - meu pai havia trocado um Fusca sessenta e alguma coisa pelo Chevete - e voltar pra dentro abanando a cabeça negativamente, meu pai me disse pra não mexer na chave, que ainda estava no contato, e foi atrás dela dizendo: "Pô, Baxinha!", como ele sempre dizia quando percebia que não tinha agradado.
                Fechei a porta do Chevete e continuei minha viagem por uma estrada qualquer, sem virar a chave, que ainda estava no contato. Enquanto ia viajando, pensava na vontade repentina que me tinha surgido de ser pai, de ser um pai igualzinho ao meu, de ser meu pai, dentro de Um Chevete Branco com uma buzina rachada, que mais parecia uma cabra berrando, quando acionada.

cimatti
Enviado por cimatti em 26/01/2010
Reeditado em 27/01/2010
Código do texto: T2051461
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