UM HORÁRIO NÓMADA - A ACTIVIDADE DO PROFESSOR

“A questão das aulas é muito simples. Penso que as aulas têm analogias noutras áreas. Uma aula é algo que é muito preparado. Se queremos cinco minutos, dez minutos de inspiração, temos de fazer uma longa preparação para termos esse momento único, se não o temos, não temos nada. Eu vi que, quanto mais fazia isso, mais tinha essa convicção. Preparava-me muito para ter esses momentos de inspiração. Com o passar do tempo, percebi que precisava de uma preparação progressivamente maior para obter uma inspiração cada vez menor. É necessário reflectir. Como tudo, são ensaios. Uma aula é ensaiada. É como no teatro e na música, há sempre ensaios. Se não tivermos ensaiado o suficiente, não estaremos inspirados. Uma aula quer dizer momentos de inspiração, se esta não existir – repito – não temos nada”. (Gilles Deleuze)

Reflectir, pensar, fabricar conceitos, fazê-los funcionar em contextos criados, ensaiados, para produzir momentos de inspiração. Mas, como afirma Deleuze, não há, inevitavelmente, proporcionalidade: os momentos de inspiração são breves, mas são o resultado de uma longa preparação. Preparar é ensaiar, é dirigir as personagens do pensamento a falar, a dizer, é dirigir o movimento no espaço e no tempo. Preparar para inspirar, inspirar como resultado, mas também como condição de realinhar o ensaio num processo de diferenças e repetições. A questão das aulas é uma questão cénica, há uma dramaturgia evidente que não cede numa analogia com o que se passa num palco. Como aqui, o que ocorre é sempre uma consequência, o que ocorre não é nunca um decalque exaustivo do que foi previsto, mas – não há qualquer dúvida –, o acontecimento é acontecimento novo a partir de um critério, de uma referência que foi instaurada por uma ordem anterior que planeou múltiplas possibilidades, que ensaiou o dizível por onde concorre o indizível. Daí que toda a improvisação parta de um ensaio, daí que toda a inspiração exija ensaio para repetir e diferenciar. Isto é: “a questão das aulas é muito simples” – pressupõe trabalho, muito trabalho, tempo e espaço –, um “antes”, uma anterioridade que se desenrola no silêncio, em silêncio, capaz de originar pensamento, ideias, conceitos, representações, imagens. Deleuze pergunta o que acontece na cabeça de alguém quando tem uma ideia. Como pensamos, como imaginamos, como comunicamos? É por aqui, por estas fendas, que a questão da educação também se coloca. Temos de pensar, temos de comunicar, construir uma linguagem que pense interminavelmente o pensado sempre pensável. O professor, o orador, dirige-se a um auditório que ele pressupõe num determinado estado cognitivo. Trata-se de provocar diálogo, de fazer emergir convicções, conceitos, desde os mais débeis, que provoquem vários cruzamentos com aquilo que definimos tratar, problematizar. Mas - e de novo o ensaio é urgente – “o orador que diz o que diz tem de o dizer de um determinado modo: é preciso considerar a matéria da qual tratamos, a matéria que abraçamos, fascinante. Às vezes temos de nos açoitar. Não que seja desinteressante, a questão não é essa. É necessário chegar ao ponto de falar de algo com entusiasmo. O ensaio é isso. As aulas são algo muito especial, muitas coisas aí acontecem. Uma aula é algo que se estende. É um espaço e uma temporalidade muito especiais. Há uma sequência, não podemos recuperar o que não conseguimos fazer. Mas há um desenvolvimento interior numa aula, as pessoas mudam. O público de uma aula é, de facto, algo fascinante (…) É preciso estar totalmente impregnado do assunto e amar o assunto do qual falamos. Isso não acontece sozinho, só ensaiando, preparando, repetindo. Na própria cabeça, encontrar o ponto em que…É muito divertido, é preciso encontrar…É como uma porta que não conseguimos atravessar em qualquer posição”. (G.D.)

Voltemos ao espaço-tempo. São, efectivamente, categorias físicas, mas também cerebrais, físico-cerebrais. O espaço-tempo do professor é experimentado em movimento, um movimento não circular, um movimento rectilíneo caracteriza-o. O que significa a afirmação? O tempo marca qualquer actividade, por isso leccionar tem um horário, preciso e rigoroso. É um tempo marcado, assinalado, quase cronometrado. O tempo físico. Mas um outro tempo corre, desenvolve-se, mesmo de um modo incontrolado. Aqui, o professor é autor do tempo, ou melhor, o tempo e o autor confundem-se: pensar, conceptualizar, problematizar, ensaiar, preparar, recusar o tempo cronometrado, domesticado, recusar o território, correr rectilíneamente para libertar… Só assim é possível tornar o horário de leccionar mais nómada, subjugar esse primeiro tempo à liberdade de fazer correr o tempo. De novo, ensaiar para proporcionar a inspiração. E o espaço também é nómada. Onde ensaiar, preparar melhor as aulas? Numa galeria, no cinema, andando pela beira-mar, lendo numa biblioteca ou em casa, assistir a um concerto, falar na rua sobre política, arte, filosofia, ciência, escrever na mesa de um café? O horário de um professor não é o horário das horas que lecciona. Esta é uma concepção perigosa da educação, mesquinha, cínica. O horário de um professor é quase não ter horário, no sentido, entenda-se, de que a sua acção não se limita ao registo de uma presença na sala de aula, há uma outra história que começa a ser narrada numa cumplicidade solitária. Mas corremos o risco de perder o ensaio – logo, a inspiração – em reuniões intermináveis e inúteis, papeladas e burocracias insuportáveis. Corremos o risco de estagnar mentalmente com reformas, revisões de conteúdos, redefinição de competências e objectivos. É entediante a parafernália lexical que se ouve ou que se lê a propósito de pedagogia e educação, gasta, incapaz de produzir outros conceitos, ideias que operem mudança, problemas que suscitem novas perplexidades. Há um vazio amargo à espera de uma ventania arrasadora.

Ainda o teatro. Não há peça sem ensaio, sem trabalho de bastidores. E por aí começa algo que nunca se sabe como termina, se termina. Ensinar é construir, pedra a pedra, um cenário nómada.