Escrevendo Coisa Alguma

Chega uma hora na vida que tudo deixa de fluir na leve harmonia que sustenta o peso das coisas, como se imprimissem audácia na própria gravidade. É um certo desembalo, um acaso meio místico que retrata a verdade intrínseca de cada coisa. Tudo se manifesta de forma descoordenada e posso sentir então a materialização de cada elemento se fazendo existente. Sinto também o imaterial peso daquilo que se faz e não existe propriamente, como as palavras por exemplo - Sinto o peso do seu timbre acoplado a entonação expressiva de seu som. Talvez as palavras escritas também pesem bastante e próvavel seja por isso que leiam isto por entre suor escorrido.

Sempre fui bom e perspicaz na diferença das nuâncias que cada coisa tinha de particular, assim como sempre preferi que cada coisa imprimisse realmente o peso que na palavra concreta nela existia e assim eu pudesse ter melhor conhecimento de mundo. Como sempre fui rodeado de carrinhos e era pego por minha mãe na escola até tarde de ginásio (ah e também tem a história de papai noel), via sempre o óbvio em si, sem perceber o que cada letra jorrava de vida. Sim, eu já nasci sabendo que existe a forma. Que existe um corpo. Só isso. E por nascer sabendo, sentia-me verdadeiramente uma inteligência genuína sem saber que vale mais a pena uma burrice meio esperta. Poderia agora ter desgastado menos meu corpo. Por isso escrevo similar a um bichano sem pele, com dor e sangrando. Meu erro foi nascer sabendo e eu sabia. Não, não sabia. Sei lá.

A brisa também me tocava nas manhãs de primavera trazendo uma doçura emanada por entre fragrâncias mistas ora de orquídeas, ora de violetas - e eu me sentia dentro de tanta coisa. Ah, meu amargo ludíbrio que me fazia viver sem ter vida. Mas não importa, o instante em que lhes conto tem de se fazer presente porque este é um estado que imprimo no já, pois posto que escrevo minha alma e escrevo quebradamente em pausas, posso conduzi-los desde o que absolutamente é insensível até o esmagamento brutal, como quem sofre a cada minuto antes de sua morte e isso é fruto do astral. Sim tenho um certo que intuitivo que me faz dizer que sou até cabalístico.

O que eu estava falando mesmo? Sei que é algo sobre alguma coisa que pesa mais que o próprio peso, mas já me perdi. Continuemos a coisa então - minha balança está livre. Quero escrever sobre essa coisa, esse vácuo dentro de mim. É difícil ser coisa? Ser coisa é mais do que simplesmente se pensa, pois uma coisa hoje já não é mais a coisa de amanhã, e é por isso que tudo muda. Você conta uma história, esquece, traduz a inconsciencia em coisa e a modula. A coisa se transforma e dá crias e é exatamente essa a contradição que gera o erro (para quem não entende coisas). A coisa também se assusta. Mal ela sabia que ela mesmo não era uma coisa. Afixada na parede como um quadro de moldura calibrosa o parafuso se descola aos poucos.

Ser coisa é fácil quado ela simplesmente existe e não dá crias. Difícil é ser coisa mãe. Pois quando se é mãe se têm duas coisas e lidar com isso é difícil, é trabalho dobrado nas dobras do tempo. E quando a gente vai ver, os filhos estão lá comendo pipoca ao lado de seus outros filhos. Já temos netos! Não podemos sustentar essa superpopulação e então é melhor recorrer as teorias capitalistas. Como é bom resolver as coisas. Ser coisa é diferente de Ser-coisa. O ser-coisa sou eu. Ser coisa é o reflexo do ser-coisa, ou seja, é mninha penumbra que se espalha no chão com uma leveza sutil e grandiosa. É uma penumbra grande apesar da coisa parecer esconder uma carcaça pequena: c-o-i-s-a. Fragmentei-a para tentar ver íntimo mas não acho que seja puramente eficaz, pelo contrário, ofusquei ainda mais outras coisas ainda tão coisas. No fundo, eu acho que a coisa é um pouco tímida. Sabe? Um pouco envergonhada por nunca ter se aberto. E minha intenção que era libertá-las se concluiu inversa.

Ser coisa por si só já é estranho. Tudo isso porque vemos a coisa na nossa frente: coisa coisada em coisos. Coisa é objeto? Coisa é coisa. Tem personalidade própria e vive e porque vive, gera vida. E me perdoem, mas isso já é o suficiente para contestar qualquer frase que diga que coisa não vale a pena. Coisas valem a pena, assim como viver vale a pena. Como sinto felicidade em todo esse ar que respiro e trafega sem destino. Tenho inveja do vento frio e úmido que se aquece por entre coisas. Ele entra tão dentro dos seres-coisas - sai, mas volta. E me sinto tão feliz por receber essa visita contínua, como quem me tira a amizade com o vácuo. Me sinto um astro sendo competido por tantos. Sou uma coisa! E tanto! Isso é um fato.

Outro dia estava caminhando pela rua, quando da calçada oposta, alguém acenou para um pedestre meio distraído e gritou: Ei coisa, vem cá! O garoto que parecia ter lá entre seus 18 e 20 anos virou-se com um ar de quem tragou a própria ausência de tão envergonhado que estava. Continuou a andar com ar abafado - Ele que era coisa e não se reconhecia. A coisa personificara ele em outra coisa, mas ainda sim ele permanecia nesse estado? Não? Coisa era algo ruim. É duro saber que se é algo ruim. Ele nasceu sendo alguém que não era e sem pedir o que é pior ainda. Nasceu e falaram: Seu nome é coisa. E trancaram sua alma. A troca de sua liberdade? Para ganhar a liberdade era preciso de muito mais coisas. Ganhei um pouco mais de liberdade quando aderi coisas. Mas cuidado. A recompensa é também o perigo de perdê-la, assim como matar a charada de um enigma resulta em um outro enigma. Há um limite em que a liberdade em excesso é uma prisão perpétua e aí poderá a coisa jamais voltar a ser e terá de ser sempre ser-coisa. E aí, mais coisas nascem e a coisa inicial fica ali encoisada. Ah, a vida é tão monossilábica. Só desejava a plenitude. Até ser coisa-monossilábica ainda me arranca uns risos de felicidade. Coisa-coisa não. Mas...

Escrevo para tentar lançar o eco que existe em cada coisa, para soltar o berro com letras maíusculas e sem pausas, deixando todos surdos tamanha era a amplitude e sua duração. Mas eu queria lançar isso no ar e que esse eco adquirisse novos pacotes de frequência talvez um pouco mais desafinados - mudaria meu estado composto e me tiraria esse peso. Sou composto de osso e eco, porque a carne já se foi e eu já disse. Não escrevo para me ouvir simplesmente, embora isso eu diga a todos. Realmente é um prazer meu e não prezo por ser coisa-escritor, coisa-amador, coisa-algo-do-tipo. Não sou nada, sou apenas coisa, por isso sou tudo também. Mas gosto de escrever para que possa observar estilhaços de vidros se rompendo e rasgando coisas. Era tão bom ver o vermelho de seu sangue coagulado: As coisas tinham vida. Pena que percebi isso tão tarde...