DEUS E A SOCIEDADE
A bala te atingiu certeira. Perdida e certeira e então meu grito ecoou, instintivo, automático, insano.
___Por que? Por que?? Por que???? Meu Deus, meu Deus!!! Meu Deus, onde estavas???? Onde???????????????? Por que permitiste??
Todos olhavam para mim, meu braços segurando teu corpo inerte, sem vida. Uma cena surreal para mim, só para mim. Para os demais apenas mais uma vítima, mais um número para as estatísticas.
Eu que do alto de meus 40 anos aprendera a cuidar tão bem de mim e de ti, aprendera a dar-te valores, orientações, carinho e amor. Aprendera a te ensinar a defender teus interesses e desejos. Quanto aos demais, cuidariam eles mesmos de seus interesses e desejos, mesmo que estes fossem muito diferentes dos seus, até opostos, eles tinham direito a defendê-los.
Aquele que empunhava a arma da qual saiu o derradeiro projétil, defendeu seus próprios interesses e acabou com os teus, meu filho.
Os dias se seguiram e continuei a questionar o único, que em minha opinião, poderia ter impedido a tragédia: Deus.
Em momento algum Ele respondeu. Talvez eu fosse pequena demais para merecer a atenção do Criador. Foi assim que passei a chamá-lo, Criador e não mais Salvador, pois ele não te salvara e ainda criara aquele que te matou! Minha imensa dor não permitia que fosse mais branda em minha relação com Ele.
Pelo menos a Ele eu tinha que mostrar toda a minha dor e indignação, pois aos demais, parecia que eu estava a fazer drama, afinal eu não era a primeira e certamente não seria a última a perder um filho com uma bala perdida. Eu sabia disso porque fora o que escutara de uma “amiga”. Talvez ela quisesse me tirar do torpor, para isso havia tanta dureza em suas palavras. Não importa, ela não entendia, nunca entenderia, a menos que.....deixa pra lá.
E de repente, com o passar dos dias eu entendi. Entendi que o Criador, não tinha a ver com o que ocorrera. Ele não pode interferir. Ele nos deu livre arbítrio. Como podemos ter livre arbítrio e quando algo ruim acontece questionar o que tanto valorizamos?? Não podemos, isso seria cinismo e no meu caso, foi infantilidade, dirão alguns, imaturidade e se outros me permitirem, foi DOR mesmo.
A quem responsabilizar então? O governo, a polícia? As leis? Fiquei com estas últimas. Tão perfeitas na defesa da liberdade individual, tão brandas com aqueles que cometem crimes, afinal todos somos iguais e temos direito à defesa. Que lindo! Uma lógica irrefutável. A Lei é para todos. A defesa é para todos.
Que lógica não seria irrefutável? A lógica do individualismo? A lógica do “eu cuido de mim e o outro que cuide de si”? Uma lógica tão perfeita, tão inclusiva, tão igualitária. Uma lógica tão elástica.
A verdade é que somos hoje reféns de uma dinâmica social que está impedida de reprimir o mal. Tratamos o mal como um igual, permitimos que ele se alastre e responsabilizamos a Deus, questionando-o por isso.
Construímos, desenvolvemos e permitimos nossas mazelas e quando a dor bate à porta, questionamos a Deus!! A morte, o estupro, a pedofilia, são permissões humanas, não divinas.
Consumimos uma ideologia do prazer a todo custo e quando um drogado mata metade dos clientes em um bar, avançando com seu carro, foi Deus quem permitiu?
E ainda há aqueles que defendem a liberação das drogas. Elas deveriam ser sancionadas, permitidas. Acreditam que com a permissão, não haveria mais tanto consumo. Ora, ora, ora, os jovens não usam droga apenas porque é proibida, consomem porque dá prazer e em suas onipotências acreditam que todos aqueles que morreram, morreram porque não souberam se controlar, ao contrário de si é claro. E quando começam a matar e a morrer por elas aí eles viram vítimas??? Aí foi Deus que permitiu?
Muitas são as vezes em que questionamos a Deus por tragédias conseqüentes da sociedade que estamos construindo, principalmente nos últimos 100 anos do capitalismo. Deveríamos ao menos respeitar a dor daqueles que sofrem, mas não, exigimos que sejam fortes, porque afinal essa dor que os atingiu é uma dor normal!!?? Tudo agora é normal. Só não é quando bate em nosso lar, aí foi Deus quem permitiu, foi Deus.
(Valéria Trindade)