Fogo Negro
O vício que me era negado de repente me toma de overdose. A esperança abandonada reaparece sem avisar. Velhas manias retornam como amigos dos quais eu não lembrava mais. Eu e minhas neuroses, eu e minhas neuroses... Ciúmes ocultos vêm me contar fofocas e inverdades fazendo minha paciência queimar como um cigarro que se fuma até o filtro. Bebo minha depressão e nela me embriago sem a menor vergonha, depois fico um bêbado chato e tolo pedindo uma dose de autopiedade aos quase-amigos, inimigos não declarados e paixões mal-resolvidas. “Entrada somente para raros”, eu grito, ridículo, quando na verdade eu mesmo busco qualquer entrada que me leve pra lugar nenhum. E não gosto de teatro mágico, Merlin, Paulo Coelho nem nada do tipo. Falo do Hesse, aquele sacana que escreveu tudo que eu queria ter escrito antes mesmo de eu nascer, o puto covarde. Auto-ajuda eu prefiro que venha dos outros, sou preguiçoso demais pra me importar com isso. Sou egoísta demais pra me preocupar comigo. Penso em pintar as paredes do quarto, tudo preto, tudo de luto, e num dia de Sol fechar tudo que é porta e janela e torrar lá dentro. Meu próprio verão na meia-noite. Uma meia-vida é tudo que me resta, afinal. A outra metade eu tive que pagar de imposto e juros do cheque especial. Quando vendi minha alma, em vez de lucro fiquei devendo, aí já era. Se morrer terei que voltar pra saldar a dívida, então nem tem graça. Fico olhando as crianças na sala, no parque, pulando o muro do vizinho, se picando, bebendo até cair e achando tudo muito engraçado. Eu rio, mas não com elas. Eu rio delas. Rio da desgraça delas porque (na verdade, não sei por que) é melhor que rir da minha. Quando tiverem minha idade vão morrer de vergonha e constrangimento, isso se não morrerem antes. Acho que vou vomitar.