Crise de despersonalização - a perda do Eu (parte 1)

DESCRIÇÃO DA CRISE -

O indivíduo foge de si mesmo, foge daquilo que mais deseja, auto-aniquila sua personalidade em detrimento da aceitação popular e da aceitação do seu mecanismo autocontrolador inconsciente.

“Esvaziamento” do ego, obtusamento do querer.

Fuga dos problemas, ao invés de solucioná-los.

No ápice, a crise inclui o fingimento e a dissimulação como meios de conservar o “eu desejado” – o que é tão volúvel quanto a influência externa, do meio social. Mascaramento da personalidade interior, hipocrisia.

O indivíduo “acha” que quer e precisa = desnaturalidade. Adoção da ideologia artificialista como meio de evitar o impulso original – seja ele “puro” ou “rude”.

Em suma, o processo de “nadificação”, tão comentado pelos filósofos contemporâneos, num aspecto patológico (pela alienação).

(Ouça “Smells Like Teen Spirit”, veja o clipe e entenderá tudo!)

ETAPAS DO PROCESSO -

1) Inicialmente, em nossa infância, “brincamos” com a pureza – o que naturalmente queremos. Escolhemos aquilo que nos parece significativo, por um impulso espontâneo. Nós somos nossos, ainda não somos dos outros (seres sociais). Não representamos papéis. O que nos atrai significa brilho, cor substancial – Vida.

2) Somos então condicionados a abdicar da naturalidade, por meio da repressão. Nossos gestos de espontaneidade são reprimidos, tanto os positivos como os indicativos de vício. A criança o aceita, para ser amada – ser aceita socialmente, no caso pelos pais, inicialmente. A informação fixada no psiquismo fica sendo: “vou me privar dos gestos espontâneos para minha segurança, pois esta é garantida pela aceitação social – dos pais, de quem dependo.” Inevitavelmente, o indivíduo passaria a interpretar papéis sociais. Isso será até positivo e necessário em sociedade, exceto quando o que fora reprimido significar virtude – incremento positivo ao caráter. Neste caso, iniciar-se-á a crise. O papel social não será o próprio do indivíduo, não será uma vocação natural. Será, isto sim, uma “máscara”.

3) Devido à ação do impulso natural de “querer mais”, deveras humano, o indivíduo procurará algo além do que o atraíra inicialmente; algo mais significativo, mais surpreendente. Os brinquedos das outras crianças parecerão muito mais atraentes: é o desejo de conquista, natural do ser humano, e que deve ser utilitária e filantropicamente conduzido pela ação pedagógica. No caso da crise já ter se insinuado, a criança buscará o que lhe for mais artificial, menos próximo da naturalidade reprimida. A vontade de ser aceito será um imperativo de sobrevivência, mais “vital” que a busca da pureza natural. Então, a crise se desenvolverá ainda mais, com o papel social distanciando-se das aspirações próprias da pessoa.

4) Surge então a ação da mente coletiva padronizante, instituto social à princípio natural, involuntário, como força harmonizante do organismo social. É uma força coercitiva externa. Aceitamo-na pela necessidade de sermos aceitos (integração ao meio). Mas ocorre geralmente a imposição geral de tendências – quando melhor, um “conduzir” sutil da busca pelo vital. “Todos dizem” que “o dos outros” é melhor (desejo de posse) e assim nos distanciamos ainda mais da original pureza de caráter. Não buscamos mais o que espontaneamente buscávamos. Tudo isso acarreta a “quebra” do Eu puro – em detrimento do Eu social. Não significa necessariamente um caso patológico, exceto quando a massa humana influente já estiver despersonalizada, aceitando o artificialismo: todos “fogem” de si mesmos (alienação). A coerção será então pérfida, danosa.

5) O montante de problemas da vida, que segue em acumulação e complexificação (todos têm...), é muito mais difícil de ser eliminado havendo o enfraquecimento do caráter. Como já se acostumou, viciosamente, à “fuga do Eu”, é claro que seguir-se-á o hábito, sem se ter força de caráter (coragem, atitude, escolha), de meramente “fugir” dos problemas, ao invés de se resolvê-los. Esta fuga pode realizar-se mediante uso de tóxicos, alcoolismo e distrações fúteis, ainda mais “esvaziantes” do caráter pelo aspecto conformador, sedativo, amortizante dos meios de fuga. Conseqüentemente, não só o montante de problemas aumenta, como se consolida ainda mais a crise de despersonalização.

6) Chegando a adolescência – a “época da contestação” – costuma-se fugir de tudo que restringe, tanto da pureza salutar (mal propagandeada, pelo visto) quanto da impureza “óbvia”. Confunde-se tudo, praticamente sem discernimento... A urgência sentida é a de “se afirmar”, mas ainda se foge do que é puro, só que agora julgando estar se libertando do impuro! Logo, não há progresso, pois não se é sincero consigo mesmo. Vamos “na onda dos outros”, mais uma vez, agora achando que estamos justamente evitando isso... Trata-se de fugir da escravidão entregando-se a uma escravidão diferente. Quando melhor, fugimos de benefícios mal-apresentados, e até obtemos alguns novos benefícios, mas sempre alguns malefícios. No caso da tendência à despersonalização, consideraremos “benefício” o mais artificial e distrator. Amnésia e sedação: eis a face da crise plenamente consolidada.

OS DOIS CASOS -

• Caso típico: os indivíduos se consideram bem-inseridos socialmente, já que identificam-se com aqueles que sofrem da mesma alienação. Conseguem algum prazer, mas com convicção relativa. Dependem do grupo; a vontade de aceitação é o imperativo maior. Podem tornar-se os “repressores” do futuro; no presente, são freqüentemente os “opressores” dos indivíduos representantes do 2o caso, por julgá-los uma ameaça à hegemonia.

• Caso atípico: são os notoriamente “desajustados”, que sofrem muito mais que os do caso típico, pois não conseguem sequer inserir-se em um grupo onde sejam aceitos. O seu pior erro é insistir em pertencer ao grupo errado; não conseguem ajustar-se ao artificialismo e à distração, mas não buscam outra saída. Estão também fugindo dos problemas, mas não encontram nem mesmo o alívio passageiro. O indivíduo se considera um “oprimido”, e de fato o é, enquanto continuar buscando a identificação no ambiente errado. Estão simultaneamente mais próximos da solução (ao enojarem-se diante do artificialismo geral) e da perdição total (quando a opressão acarretar suicídio ou vício amortizante). Há também o risco de virem a ingressar no contexto do caso típico, pensando terem de “curado” – mas apenas caindo em outra desnaturalidade, mais aceita socialmente.

(CONTINUA)