Brisa 23

E tudo escureceu. Não me lembro bem em que ponto, mas tudo sempre escurece. Eu não saberia explicar o porquê, mas tudo sempre fica escuro. E isso me amedronta. Apesar de preferir a noite ao dia, a escuridão profunda me amedronta. O silêncio se faz mais audível nas profundezas da escuridão. E o silêncio, muitas vezes, não me agrada.

E esse é o sinal. Quando tudo escurece e se faz silencioso é porque algo está prestes a acontecer. Algo ruim, como era de se presumir. Apesar de me sentir bem no escuro, e em paz no silêncio, a combinação de ambos, quando feita repentinamente, é fatal. Torno-me apreensivo; arisco. Como um bicho acuado, preso em um canto, sabendo de sua própria morte, mas sem se dar conta de onde ela virá. As vozes começam a me dizer coisas. A principio posso distingui-las. Mas, a cada segundo que passa, mais vozes começam a surgir e todas dizem coisas diferentes e se intensificam e ficam cada vez mais audíveis e menos compreensíveis. Eu enfio a cabeça no travesseiro, buscando o silêncio pacífico inicial; nada. Eu grito, tentando chorar, mas o máximo que consigo é um grunhido que parece não vir de mim; começo a me balançar lentamente, pra frente e pra trás, me auto-embalando, como uma mãe faz com seu filho amado, mas minha mãe não está aqui e eu não sou mais uma criança que cabe no colo de alguém (pelo menos não do lado de fora).

Então ela chega. Com seus olhos doces e sua voz calma. Seu sotaque longínquo, seu perfume importado. Eu não a vejo, pois estou de olhos fechados e de cabeça no travesseiro, procurando a paz no silêncio e na escuridão, os mesmos que me apavoram, mas posso senti-la. As vozes também podem senti-la, eu sei, porque só param de gritar em minha cabeça quando ela chega. Delicadamente ela toca em meu rosto e me encoraja a abrir os olhos. Encosta os lábios perto dos meus ouvidos, onde ainda ouço os ecos das vozes, agora já quase extinguidas, e elas cessam por completo, enquanto ela diz coisas das quais eu nunca me lembro.

Ela me traz paz. Senta-se ao meu lado, ainda em meio à escuridão e ao silêncio, que agora me trazem paz. Ela me diz coisas desconexas, sem lógica, frases aleatórias, soltas no ar, pronunciadas ao léu, mas que fazem tanto sentido naqueles momentos... Frases que dizem que tudo vai ficar bem, que eu só preciso confiar nela em mim em Deus que eu preciso acreditar em Deus ainda que muitas vezes como em meio à escuridão Ele pareça tão distante... Eu ouço atento, em silêncio. Meus olhos procuram os olhos dela, em meio a escuridão e ao silêncio e de alguma forma os encontra, olhando afetuosamente para mim...

Pouco a pouco a luz vai preenchendo novamente o espaço e os ruídos da rua adentram minha janela silenciosamente. Enquanto ela não para de falar, contar coisas, me confortar e me abraçar, dizer coisas que eu nunca lembro ao certo, a não ser as vezes que diz me amar. De alguma forma, quanto mais ela fala, mais a luz se faz presente e mais eu ouço os ruídos cotidianos do lá de fora. E eu chego a pensar nessas horas que eu a amo... E amá-la seria lindo, não fosse um ínfimo detalhe sórdido e irônico...

Ela não existe. Foi o que me disseram aqueles que se denominam “minha família”, os mesmos que me disseram que as vozes não existem, os mesmos que nada sabem sobre mim. Ela não existe. É fato. Ela não existe. E eu vim entender isso quando percebi que ela desaparecia junto com a escuridão. Nunca me dizia adeus, ou até breve; nem nunca a vi abrindo a porta e saindo. Ela não existe. No primeiro dia em que me dei conta disso, peguei-me repetindo, horas depois: ela não existe ela não existe ela não existe ela não existe, ad infinitum. Por isso não a amo. Não declaradamente...

Mas talvez, no fundo, eu a ame. Senão, qual outro motivo me levaria a amar a escuridão e o silêncio, que me trazem a angústia necessária para atrair s paz que dela emana? E me faço de vítima, fingindo temer a escuridão, quando em verdade anseio por ela, para que possa vê-la, olhando em meus olhos e dizendo coisas desconexas. Ela não existe. Mas existe a escuridão e o silêncio, que me trazem angústia e paz; e também existe o meu amor por ela. Ainda que não declarado. E tudo se faz claro.

William Guilherme Sampaio [6/7/09 23h06min]

William G Gardel
Enviado por William G Gardel em 06/07/2009
Código do texto: T1686101
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