NOSSO DESEJO CRESCE COM A DIFICULDADE.
Dentre as melancolias de viver, nada mais inquietante do que a contraditória vontade. Ela é a razão pura e definidora do homem, esse ser tão inacabado quanto insatisfeito. Sempre em busca de algo para completar-se, as opções se opõem ao que lhe está próximo, fácil e possível. Não lhe é atraente o que não é desafiador, nem instigante o que é comum, lícito e fora do âmbito do risco. Viver é perigoso, disse Guimarães Rosa. E para muitos, vale a pena arriscar até o impossível, quando o possível está perto, bem ao alcance, e nem por isso é percebido e causa interesse. O proibido desperta interesse e é uma tentação da qual poucos escapam, seja pela ação, seja pela imaginação. E só a sensação de perda é que nos traz o amargo sabor de um remédio eficaz contra a indiferença àquilo que só mais tarde descobrimos ser o essencial, embora que simples, para a tão sonhada felicidade.
Estive no limbo. Transitei pelo purgatório, voltei ao paraíso. O limbo é um SPA literário. O purgatório é um retiro purificador dos excessos e das carências de quem, como eu, ousa escrever. O paraíso é um branco papel em que escrevo. É esta tela fria, muda, estática, aberta a mim. O paraíso é o meu Recanto. Algo assim como uma sociedade dos inéditos poetas vivos. Vivo ainda estou. Poeta, não sei. A poesia – minha amante – é quem dirá sobre o desempenho deste parceiro. Não sei se sou, mas sei que estou. E isso me satisfaz, me acalanta os desejos. E os meus desejos são orgasmos de versos.
Reporto-me ao primeiro parágrafo antes que me perca novamente no emaranhado de mim mesmo, em mais uma contraditória vontade. Mais do que sinto e penso é Montaigne quem o diz, e a ele devolvo a palavra:
“Não há argumento ao qual se possa objetar com argumento contrário, dizem os filósofos mais sensatos. Não faz muito, vinha-me ao espírito esta bela sentença de um personagem da antiguidade em apoio ao desprezo que devemos ter à vida: nenhum bem nos pode dar prazer, senão aquele para cuja perda estamos preparados. ‘A tristeza de ter perdido algo e o receio de perdê-lo são uma só e mesma coisa’.1 Queria dizer com isso que o gozo da vida não pode oferecer-nos real atrativo se a tememos perder. Poder-se-ia entender também que nos apegamos a esse bem e com tanto maior desejo de conservá-lo quando sua conservação pouco segura e receamos perdê-lo. Pois sentimos, e isso é absolutamente indiscutível, que assim como o fogo se aviva com o frio, nossa vontade se afia de encontro a oposição: ‘Se Dánae não tivesse sido fechada em uma torre de bronze, nunca houvera dado um filho a Júpiter.”2 Nada é, por natureza, tão contrário a nossos desejos como a saciedade resultante da facilidade; e nadas os excita tanto quanto a raridade e o obstáculo: ‘em tudo o prazer cresce na razão do perigo que nos deveria afastar dele’.3 Rechaça-me, Gala, o amor saciar-se-á logo se suas alegrias não forem temperada com algum tormento’.4 [...]
“Assim ocorre com tudo. A dificuldade valoriza as coisas. [...] Nosso apetite despreza o que se acha à sua disposição; corre atrás do que não tem: ‘desdenha o que está à mão e busca o que não pode ter’.5 proibir-nos alguma coisa é dar-nos vontade dela: ‘se não fiscalizares tua amante, ela deixará muito em breve de ser minha”.6 A privação e a abundância comportam os mesmos inconvenientes: ‘queixas-te do teu supérfluo e eu da carência do necessário’.7 O desejo e o gozo fazem-nos sofrer igualmente. A seriedade de nossos amantes aborrece-nos, mas em verdade, a facilidade com que porventura se entreguem ainda aborrece mais. Pois o descontentamento e a cólera que nascem do valor que emprestamos ao objeto desejado excitam o amor, ao passo que a sociedade engendra o desgosto; não passa o amor então de uma paixão embotada, estupidificada, farta, sonolenta; ‘se queres dominar muito tempo o teu amante, despreza suas súplicas’.8 Fingi-vos de desdenhoso, quem se vos negou ontem virá oferecer-se hoje’.9 “
De volta, aqui com os “comigos de mim”. Que a literatura me tolere, a poesia durma comigo e os meus leitores me vejam pela porta entreaberta das entrelinhas.
MONTAIGNE com a última palavra, citando Ovídio:
“O permitido não tem encantos; o proibido excita o desejo”.
MONTAIGNE, Ensaios, Capítulo XV.
1 Sênega.
2 Ovidio.
.3 Sênega.
4 Marcial
5 Horácio.
6 Ovídio.
7 Terêncio.
8 Ovídio.
9 Propércio.
Dentre as melancolias de viver, nada mais inquietante do que a contraditória vontade. Ela é a razão pura e definidora do homem, esse ser tão inacabado quanto insatisfeito. Sempre em busca de algo para completar-se, as opções se opõem ao que lhe está próximo, fácil e possível. Não lhe é atraente o que não é desafiador, nem instigante o que é comum, lícito e fora do âmbito do risco. Viver é perigoso, disse Guimarães Rosa. E para muitos, vale a pena arriscar até o impossível, quando o possível está perto, bem ao alcance, e nem por isso é percebido e causa interesse. O proibido desperta interesse e é uma tentação da qual poucos escapam, seja pela ação, seja pela imaginação. E só a sensação de perda é que nos traz o amargo sabor de um remédio eficaz contra a indiferença àquilo que só mais tarde descobrimos ser o essencial, embora que simples, para a tão sonhada felicidade.
Estive no limbo. Transitei pelo purgatório, voltei ao paraíso. O limbo é um SPA literário. O purgatório é um retiro purificador dos excessos e das carências de quem, como eu, ousa escrever. O paraíso é um branco papel em que escrevo. É esta tela fria, muda, estática, aberta a mim. O paraíso é o meu Recanto. Algo assim como uma sociedade dos inéditos poetas vivos. Vivo ainda estou. Poeta, não sei. A poesia – minha amante – é quem dirá sobre o desempenho deste parceiro. Não sei se sou, mas sei que estou. E isso me satisfaz, me acalanta os desejos. E os meus desejos são orgasmos de versos.
Reporto-me ao primeiro parágrafo antes que me perca novamente no emaranhado de mim mesmo, em mais uma contraditória vontade. Mais do que sinto e penso é Montaigne quem o diz, e a ele devolvo a palavra:
“Não há argumento ao qual se possa objetar com argumento contrário, dizem os filósofos mais sensatos. Não faz muito, vinha-me ao espírito esta bela sentença de um personagem da antiguidade em apoio ao desprezo que devemos ter à vida: nenhum bem nos pode dar prazer, senão aquele para cuja perda estamos preparados. ‘A tristeza de ter perdido algo e o receio de perdê-lo são uma só e mesma coisa’.1 Queria dizer com isso que o gozo da vida não pode oferecer-nos real atrativo se a tememos perder. Poder-se-ia entender também que nos apegamos a esse bem e com tanto maior desejo de conservá-lo quando sua conservação pouco segura e receamos perdê-lo. Pois sentimos, e isso é absolutamente indiscutível, que assim como o fogo se aviva com o frio, nossa vontade se afia de encontro a oposição: ‘Se Dánae não tivesse sido fechada em uma torre de bronze, nunca houvera dado um filho a Júpiter.”2 Nada é, por natureza, tão contrário a nossos desejos como a saciedade resultante da facilidade; e nadas os excita tanto quanto a raridade e o obstáculo: ‘em tudo o prazer cresce na razão do perigo que nos deveria afastar dele’.3 Rechaça-me, Gala, o amor saciar-se-á logo se suas alegrias não forem temperada com algum tormento’.4 [...]
“Assim ocorre com tudo. A dificuldade valoriza as coisas. [...] Nosso apetite despreza o que se acha à sua disposição; corre atrás do que não tem: ‘desdenha o que está à mão e busca o que não pode ter’.5 proibir-nos alguma coisa é dar-nos vontade dela: ‘se não fiscalizares tua amante, ela deixará muito em breve de ser minha”.6 A privação e a abundância comportam os mesmos inconvenientes: ‘queixas-te do teu supérfluo e eu da carência do necessário’.7 O desejo e o gozo fazem-nos sofrer igualmente. A seriedade de nossos amantes aborrece-nos, mas em verdade, a facilidade com que porventura se entreguem ainda aborrece mais. Pois o descontentamento e a cólera que nascem do valor que emprestamos ao objeto desejado excitam o amor, ao passo que a sociedade engendra o desgosto; não passa o amor então de uma paixão embotada, estupidificada, farta, sonolenta; ‘se queres dominar muito tempo o teu amante, despreza suas súplicas’.8 Fingi-vos de desdenhoso, quem se vos negou ontem virá oferecer-se hoje’.9 “
De volta, aqui com os “comigos de mim”. Que a literatura me tolere, a poesia durma comigo e os meus leitores me vejam pela porta entreaberta das entrelinhas.
MONTAIGNE com a última palavra, citando Ovídio:
“O permitido não tem encantos; o proibido excita o desejo”.
MONTAIGNE, Ensaios, Capítulo XV.
1 Sênega.
2 Ovidio.
.3 Sênega.
4 Marcial
5 Horácio.
6 Ovídio.
7 Terêncio.
8 Ovídio.
9 Propércio.