Brisa 17

Não é de meu feitio escrever sobre meu dia. Sobre as coisas que aconteceram hoje, ou coisas assim. Nem é de meu feitio escrever sobre mim diretamente. Porém, hoje, pretendo fazer uma exceção.

O começo do dia foi absolutamente normal. Fui à escola, não fiz nada em aula alguma (exceto na de matemática), enfim... Sabia que hoje seria um dia especial. Eu iria fazer uma visita de Capelania Hospitalar, iria orar por pessoas enfermas, levar um consolo, um sorriso. É da natureza humana gostar de “fazer caridade”. No entanto, também sabia que ela estaria lá, o que me animava ainda mais.

As horas que passei no hospital foram gratificantes. Tive conhecimento de pessoas (bebês, que mal nasceram) que sofrem males que eu sequer imagino passar. Depois da visita ao hospital, voltamos à igreja. Estávamos eu, a P e ela. Conversamos toda a tarde, sobre o passado, sobre como as pessoas mudam, sobre os planos para o futuro, sobre frustrações e experiências passadas. Durante toda a tarde estive a poucos centímetros dela. Ah, como ela fica bem de uniforme; penso que somente ela fica bem naquele verde com laranja. Apesar de estar a poucos centímetros dela, me sentia tão distante... Só eu sei como é horrível estar perto dela sem poder dizer o quanto eu gosto dela; só eu sei como é horrível estar perto dela sem poder abraçá-la, sequer tocá-la.

A tarde passou. Levamos a P ao ponto de ônibus e ela se foi. Éramos só nós dois agora. Fomos para o ponto de ônibus onde ela pegaria ônibus. Eu iria a pé para casa, pois não tinha mais dinheiro. Para minha felicidade, o ônibus dela demora um tempo considerável. Suficiente para eu abrir a carteira e checar se não havia nada mesmo. Então eu vi duas moedas de um real e uma de cinqüenta centavos; a passagem de ônibus custa dois reais e trinta centavos. O ônibus que ela pega passa na porta de casa; iríamos no mesmo ônibus até certa parte do trajeto.

O ônibus chegou; subimos; estava quase vazio, mas não havia assentos vagos. Ficamos em pé, um de frente pra o outro, devido ao ônibus ser para deficientes físicos, e ter uma área sem bancos. Durante o trajeto continuamos conversando. De perto eu podia ver cada detalhe do rosto dela. E, pensando bem agora, eu já decorei os gestos dela; o jeito de ela falar, gesticular, olhar para o nada e sorrir. E eu acho lindo cada um desses gestos. Existe um semáforo no meu bairro que demora cinco minutos para ficar verde. Eu odeio esse semáforo; mas, pela primeira vez, eu agradeci a Deus por aquele semáforo ser demorado, e cada minuto parecia uma hora, e eu de frente pra ela, tão perto...

Me espanta a dificuldade que tenho de olhá-la nos olhos. Quando estou longe dela, o que mais quero é estar perto, para olhá-la nos olhos. Entretanto, quando estou perto dela, parece que esqueço de tudo. Não a olho nos olhos, pois tenho medo do que posso ver lá dentro. Sei que ela não sente por mim o mesmo que eu por ela (ao menos não da mesma forma); não a olho nos olhos porque tenho medo de vê-los dizer algo que não é verdadeiro. Só eu sei o quanto doeu estar tão perto dela, ouvindo-a respirar, sem poder tocar, ao menos, sua mão; sem ter coragem para olhá-la nos olhos e dizer tudo o que já disse em versos entregues à ela. Quem sabe eu deveria dizer; tocar no assunto ao menos. Não sei...

Desci do ônibus. Pude vê-la se afastando, sem olhar para trás. Pude vê-la partir, com o olhar sonhador no horizonte, sem se importar com quem ficara para trás. Só eu sei o quanto dói não a ver me olhando da maneira que eu a olho. Subi ao meu apartamento, encontrei meu pai à porta. Estavam ele e as crianças em casa, mas eu estava só. Um aperto de tristeza encheu meu coração, um nó se fez em minha garganta, sem mais nem menos. Tomei um banho, senti-me melhor. De súbito tive a idéia de escrever algo sobre o que havia acontecido hoje. Mas não me encontrava em um estado mental bom suficiente para escrever como de hábito, indiretamente, por enigmas. Então quebrei meus hábitos e escrevi o que aconteceu e como me senti hoje. Agora irei deitar-me. Só eu sei o quanto dói ter uma imaginação fértil o suficiente para rever meu dia todo uma vez mais, e imaginar o que teria acontecido se eu tivesse falado com ela. Minha dor não se compara com a da mãe daquele bebê na U.T.I Infantil. Não chega nem perto. E isso, bem ou mal, me consola e me faz saber que o que dói em mim é a dor de um sentimento que cresce. Um mal necessário. Boa noite.

William G. Sampaio [29/10/2008, 22h18]

William G Gardel
Enviado por William G Gardel em 17/04/2009
Reeditado em 18/04/2009
Código do texto: T1545052
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