Ao espelho
O que os olhos enxergariam sem o enlace da alma com aquilo a que nos propomos ver? Veríamos pela metade, seria apreender as coisas e os seres aquém de seus limites, sem poder enxergar deles aquilo a que a nós revela um ser, e a eles revela um ser em nós. Quando dispomos compartilhar o que é secreto, é demasiado grande o risco de achar um espelho onde essa imagem cerrada possa refletir diferente do que supomos sê-la. Daí em nós se instala o medo lancinante de encontrar o outro, alguém além de nós mesmos.
E quando submersos nessa angústia, os nossos sentidos captam das coisas e dos seres apenas o que deles é falso, por que já os buscamos por meio de olhos cegos, olhos ofuscados pelo medo de não poder achar em nossa busca a nós mesmos no além, no desconhecido. Então, qualquer rumor de semelhança do que somos encontrada nessa jornada da alma é visto como verdadeiro, como porto seguro onde podemos aportarmo-nos . E o que julgamos dessemelhante é, geralmente, combatido como o nosso invasor, que necessita ser repelido.
Mas se a procura do ser além de si exige que achemos uma correspondência de nós em um espelho refletida, pois não se busca nada que não já se possua, ao menos, em desejo; e a comodidade de absorver fácil as semelhanças encontradas com aquilo que, em nós, já existe como anseio do ser, tal comodidade leva-nos aos olhos o véu da praticidade, uma certa anestesia dos sentidos, que não nos permite perguntar: por que repudiamos o diferente? Apenas ser ele diferente? Se a grosso modo o semelhante, geralmente, é o mal juízo dos olhos envoltos pela venda do medo de não encontrar o que se busca, o dissímil seria o risco desse encontro. De fato, pois, a cegueira é cegueira também porque não quer ver; e o risco de poder ver é sempre o medo maior a ser enfrentado. Ou como bem disse Pascal, "O homem está sempre disposto a negar tudo aquilo que não compreende".
Não raro, quando buscamos nosso reflexo além de nós mesmos, o dessemelhante é o risco que não assumimos e, assim, tanto o repudiamos, porque quando nos encontramos diante do espelho a imagem exata do que somos é anteposta a nós refletida e, como um cachorro ao qual nunca lhe fora apresentado o seu reflexo, nós o estranhamos, enxergamo-lo como o outro, o invasor. É como, à noite, subitamente, ver no espelho a si mesmo e espantar-se, em razão de os olhos não poderem ver com a alma, é como ver sem a si próprio.
Assim, grandes discordâncias entre pais e filhos dão-se pois essa "dessemelhança" é tão acentuada que ambos se negam a querer enxergar o que na face do espelho é certo como reflexos tão semelhantes de si mesmos. E fala-se aqui em dissenções que perduram uma vida inteira. O medo que envolve o risco de assumir esse encontro, de querer ver com a alma o outro, quando encontramos a exata correspondência de nós mesmos, é tão pungente que o ser recusa esse encontro, recusa-se a se deixar ter como reflexo o que os olhos está a enxergar deveras.
Indubitavelmente, ver sem a alma é a pior das cegueiras, é esperar do seres e das coisas algo sem ofertar nada em troca. Desse modo, cindimos a própria relação sujeito obejto, porque não os enxergamos a maneira correta, mas a forma conveniente ou ignara das simples aparências, pois é a isso que se resumem as semelhanças encontradas por olhos mergulhados na escuridão do ser. Assumir o risco de querer das coisas aquilo que lhes é próprio, aquilo que também vive em nós é aceitar que a nossa busca do outro e a de nós mesmos só será completa com a assunção desse compromisso, o de não temer o que o espelho da alma nos reserva quando nos entranhamos em densas florestas escuras e tenebrosas sem a mínima certeza do que encontraremos no além de nós mesmos.