Doando órgãos

- Quando você saiu de casa, era como se tivessem me cortado as duas pernas fora...

Parece só exagero de mãe, mas eu entendi. Eu era seu passaporte para o mundo. Eu havia lhe dado pernas, mas precisava delas de volta. Porque fui me unir, como uma gêmea siamesa, a alguém que eu imaginei ser a minha metade... para depois descobrir que não precisamos de metades, porque temos tudo em dobro.

Quando voltei a ser inteira, talvez não tenha me acostumado. E passei a me distribuir, generosa e ingênua. O último me levou um olho e um pulmão. Agora não vejo mais tudo brilhante como via; as coisas não têm mais tanta cor nem profundidade. E respiro apenas superficialmente, cansando-me com facilidade.

Mas ainda tenho um de cada. Ainda enxergo, ainda respiro. Metade de mim está inteira, e joãobobamente vou e volto. Desse jeito, teimosa. É bem verdade que, de cérebros e corações, nada de duplas - ainda que cada um tenha dois hemisférios, dois ventrículos. Bom que sejam únicos pois, moradores de um condomínio desorganizado, fazem questão de não se entender. Se fossem mais numerosos, então...

Assim, por ainda ter tanto, continuo deixando os pedaços por aí. Às vezes, eles nascem de novo: planária, estrela-do-mar, lagartixa... Milagres da regeneração.