SR NEUTRO
Conheci o Sr Neutro ainda muito pequeno. Nesta importante época, já comecei a perceber o quanto precisávamos de sua atenção, mas ele insistia em não dispensá-la conosco. Preferia os bares da vida, a cachaça, as amizades de botequim.
Sr Neutro vivia uma rotina kantiana, porém a anos luz da grandeza do filósofo alemão. Acordava sempre às 05h00, saia de casa exatamente às 05h30 e podíamos acertar o relógio quando ele chegava, sempre pontualmente às 18h00.
Fazia sempre as mesmas coisas, os mesmos gestos e trejeitos, chegava e não cumprimentava ninguém, nem com um pequeno aceno, tirava os sapatos, sempre sapatos, nunca outro tipo de calçado, lavava as mãos, ia até as panelas, onde o jantar já estava sempre pronto, colocava a comida no prato, sentava-se à mesa e comia sem pronunciar uma única palavra. Todos os dias era assim, como um ritual, como uma missa rezada em latim.
Depois do jantar, sentava-se frente à televisão para assistir à “novela das sete” e logo após ao Jornal Nacional. Sempre fumando muitos cigarros, sem se importar se ali havia outras pessoas. Acabado o Jornal Nacional, o destino era a cama. Invariavelmente, às 20h30, o Sr Neutro ia se deitar, sempre sem dizer coisa alguma. Ao menos que algum filho tivesse “aprontado” alguma travessura e tivesse sido “dedurado”. Então entrava em cena um homem irritadíssimo, que gritava e xingava muito. Não queria saber os porquês das coisas, apenas falava seus impropérios até cansar.
Observava que o Sr Neutro não era homem de grandes paixões. A começar pela esposa que nunca chamava pelo nome ou qualquer outra alcunha carinhosa, mas sempre assim “O”. “O” era o nome dela, nunca a vi reclamar disso. Resignava-se com a vida que levava, afinal, tinha sempre comida à mesa e isso, na visão dela, era o mais importante.
Ainda nas paixões, Sr Neutro, estranhamente, não torcia para nenhum time de futebol, não tinha nem um tipo de religião, não saia de casa, não conversava e nem brincava com os filhos. Não me lembro de ter algum dia conversado qualquer assunto que seja com ele.
Livros, jornais, revistas ou qualquer outro tipo de material impresso não existiam ali. Parecia uma casa de ágrafos. Sem cultura escrita de qualquer espécie, a não ser os tíquetes de caixa de supermercado. Estes ele lia com muito cuidado, pois tinha pavor de ser “passado para trás”.
Falando sobre passar para trás, ele fazia questão de deixar claro que não confiava em nós. Que não confiava em ninguém, que nenhuma pessoa era digna de sua confiança. Antes de se deitar, conferia todas as fechaduras das portas, pois também morria de medo de ter algum patrimônio furtado.
Estava sempre com pressa, sempre. Mesmo nos finais de semana, andava sempre correndo. Não tinha tempo a perder com coisas banais como, por exemplo, a educação dos filhos. Deixava este encargo todo nas costas da mulher que também possuia recursos parcos para enfrentar uma sociedade em metamorfose, cada vez mais complexa.
Não se importou com a formação dos filhos. Com certeza acreditava que não seriam coisa alguma. Buscava sempre as soluções mais fáceis e baratas para o incomodar o mínimo possível. Sua mania de economizar chegava a ser patológica. Lembro-me até hoje de seus gritos quando eu estava no chuveiro: “Chega! Chega com esse banho! Pensa que eu sou sócio da Light?”.
De toda esta história, só tenho a comemorar que não recebi posicionamento ideológico ou religioso algum. Por ser totalmente indiferente à vida, o Sr Neutro não procurava dogmatizar ninguém. Talvez seja a única coisa boa que me legou.