Entre o 'queria' e o 'quero'.
Sempre considerei papai um homem muito sábio, pois ele aproveitava qualquer conversa que tínhamos para me ensinar e estimular algo em mim que só ele podia ver. Nenhuma de suas palavras é jogada ao vento.
Papai tem ancestrais índios, e seu avô era um pagé. O que muitos pensam ser nele Espiritismo, na verdade é hereditariedade Xamã que ele carrega. O Xamanismo é a alma de todas as crenças que passaram a existir. Existia antes da existência das religiões. É a crença no Divino das civilizações primitivas, por isso está presente nos nativos das terras.
Ele contou e conta até hoje a mesma história sobre meu nascimento, história que foi contada, primeiro a minha mãe, depois a mim e aos meus irmãos, e hoje conto aos meus filhos. Compartilho com você também, alma irmã.
Diz papai que antes que eu nascesse, ele já sabia quem eu seria, que nome deveria ter e como seriam as fases marcantes de minha vida, porque eu ainda não havia nascido, mas já existia no útero de mamãe. Durante a gestação, ele sonhou como que acordado e um ancião de longas barbas brancas e vestidos longos tão alvos quanto sua barba apresentou-se diante dele. Disse que nasceria neste mundo uma menina, e que seu nome deveria ser Rita. O motivo para a escolha deste nome papai não diz. Quando eu lhe perguntava, ele sorria e dizia que 'faz de conta que foi uma promessa a uma santa'. O ancião também dizia que eu atravessaria obstáculos que pareceriam intransponíveis, e devido a eles eu sentiria muita dor e sofrimento. Mas, que papai não deveria me poupar de nenhum deles, que confiasse na proteção Suprema que já estava sobre mim, e que entendesse de que tudo que iria acontecer era uma preparação para um Bem Maior.
Todos os dias de minha infância até hoje - mesmo vivendo longe de nós - papai utiliza cada palavra para ensinar algo. Quando não estou bem, ele me liga e já pergunta: - O que está acontecendo, riqueza? Ele assistiu meus maiores tropeços, meus maiores lamentos, minhas dúvidas e incertezas, e apenas me sorria. Em seu sorriso eu sabia que tudo iria passar. Ele se colocava como uma menção simbólica de algo maior que estava presente assistindo tudo, e não me deixaria passar além do que eu deveria.
Enquanto mamãe que abandonou o Catolicismo - quando eu tinha uns 5 anos para seguir a religião evangélica- tentava me aprisionar e limitar meus passos, para impedir com sua proteção tudo o que a vida me trazia, papai apenas confiava que eu estava protegida. Certa vez, eu me encontrava em um de meus delírios febris inexplicáveis na cama, e papai apenas entrava vez ou outra no quarto e dizia para eu me manter firme. Mamãe chamou seus irmãos de crença, temerosa por aquilo, e eles tentaram me exorcizar, e hoje há risos nesta lembrança.
Eu vez ou outra sempre chegava pedindo aos meus pais alguma coisa. Eu usava o mesmo recurso com ambos. Com mamãe sempre vinha um sonoro não. Eu era teimosa, e não aceitava - como não aceito - um não como resposta. Perguntava por que não... E ela dizia porque não... Eu dizia: - Ah, deixa, vai? Ela respondia:- Não! Ás vezes passava meia hora e eu ainda estava ao lado de sua máquina de costura, dando pausas entre o pedido e minhas mãozinhas na almofada de agulhas que eu tentava colocar numa ordem... Nesse tempo ela ia irritando-se, e o 'não' ficava mais sonoro e estridente. Mesmo assim eu insistia... Papai olhava de longe e apenas ria, até que mamãe ameaçava levantar para me dar umas palmadas ou batia a mão sobre a tesoura, fazendo um barulhão.
Eu saia de perto e passava por papai rindo. Depois ia até ele do mesmo modo como fazia com mamãe: torcendo um pezinho, entrelaçando as mãos torcendo os dedos, e timidamente dizia: - Papai, eu queria tanto...
Ele ria e dizia: - Se queria, é porque não quer mais.
Eu respondia: - Eu queria, porque meu querer ia, vai... Vai querendo...
Ele sempre soltava uma gargalhada e repetia: - Quem queria não quer mais!
Eu insistia: - Eu queria, porque não sei se posso ter o que quero, e o senhor como é mais velho que eu vai saber se posso querer ou ter... E porque eu posso ou não... Quem quer, paizinho, quer ontem, hoje e amanhã...
Assim, papai sempre me dava o que eu pedia. Mas, com minha irmã era diferente... Ainda é. Ela sempre ia até papai e dizia convicta: - Pai, eu quero... Ele respondia: - Não! Ela reclamava: - Por que pra Rita você dá e pra mim não? Ele a olhava com ternura e dizia: - Porque ela sabe pedir! Aquilo me machucava um pouco, então eu dividia tudo o que podia com minha irmã. Mas, mamãe era super protetora com ela, e dava-lhe o que queria sem precisar pedir.
Os anos passaram, e sempre foi assim. Eu 'queria' e minha irmã no 'quero'. Eu tinha de papai, e ela não. Havia exceções quando ela dizia que 'queria'. Mas papai sabia que ela ainda não havia aprendido, e dava na esperança que ela entendesse.
Até hoje, quando eu e minha irmã conversamos, compartilhamos as coisas que eu 'queria' e as coisas que ela 'quer'. Todas as coisas que eu quis, embora sem valor e pequenas diante dos olhos de uma maioria, eu consegui. Todas as coisas que ela quer, continuam num queria...
Houve vezes, que contei aos meus filhos 'virtuais' a história do 'queria' e do 'quero', quando estes se encontravam frustrados por não conseguir alguma coisa. Eu aprendi que tudo me é lúcido, mas nem tudo me convém. Aprendi que todo dia eu oro: seja feita a Tua vontade, assim na terra como no céu.
Nem tudo o que queremos podemos ter, e se podemos, nem sempre pode ser exatamente como queremos. No meu aniversário de 15 anos, papai não podia me dar uma festa de debutante... Explicou-me pra que esta festa servia, e me dizia que aos poucos, eu mesma iria me apresentar a sociedade quando eu estivesse pronta. Perguntou-me então o que eu gostaria de ganhar... Eu sabia de suas limitações financeiras... Eu disse que gostaria de um aparelho de som para ouvir minhas músicas. Ele foi às lojas e seu dinheiro não era o suficiente para um do modo que ele julgava que eu merecia. No caminho, encontrou um amigo que estava vendendo seu aparelho de som, por estar com dificuldades financeiras. Meu pai foi até sua casa, viu o aparelho e pensou: - É a cara da Rita... O dinheiro que tinha daria para comprar e comprou. Colocou num lugar especial na sala, e esperou que eu chegasse da escola. Quando cheguei, explicou que o dinheiro que tinha não deu para comprar um novo, mas que comprou um de segunda mão em perfeito estado. Eu naquele momento, não prestei atenção nesta parte, eu só queria vê-lo. Era o som mais lindo que eu já vi: frente em madeira, botões aos montes de todos os tamanhos, e uma tampa bonita de acrílico fume... Era enorme! Com vitrola, toca-fitas, rádio com quatro faixas e eu podia pegar estações em espanhol e castelhano. Entrada para microfone e fone, e duas caixas acústicas imensas em madeira. Eu gritava e pulava, me jogando no colo dele, enchendo-o de beijos. Peguei os discos antigos que foram presentes que ele deu a minha mãe, e ficava ali parada, admirando tudo. Ele chorou... Nestas horas sempre dizia que sua vista ardia e que precisava trocar os óculos. Depois de um ano mais ou menos, soube que este aparelho de som tinha um nome que tem tudo haver comigo: Máscara Negra. Foram fabricados poucos e já havia saído de linha. Na época de seu lançamento, era o aparelho mais moderno e luxuoso que havia. Eu não me importava nem com o fato de ser usado, nem de ter sido um dia top de linha. Papai havia me dado o que pedi, e era muito melhor do que eu esperava e ainda ganhei dois Lp’s dos Beatles que sempre sonhei ter.
Quando se queria, se quer algo que existe na nossa mente, no coração ou nos mais secretos desejos... Quando se quer, já se decidiu por conta própria que irá ter. Mas, estamos entre a vontade Suprema que rege nossas vidas e o curso natural de todas as coisas...
E digo aos meus 'filhos' todos: - Queira, tenha certeza do que está querendo e repita 'eu quero' pra si mesmo! Queira, sinta a dimensão de seu querer e diga o quanto queria!
Quando se 'queria' o que você quer se destaca nas prateleiras do Universo para que você possa ver. Quando se quer, você já está enxergando ao seu alcance...
No meu caso, até hoje eu sempre digo 'queria', pois minha vida nunca cursou segundo o meu querer... No fundo, nada do que vivi e vivo eu queria ou quis, mas a vida me deu e eu aceitei de bom grado. No fundo, tudo o que eu queria, foi exatamente o que a vida me deu. Tudo o que eu olhei, sonhei, mentalizei e disse 'quero', não veio, pois há muitos anos permiti que a vida e a vontade Maior me desse o que iria contribuir para aquilo que o ancião contou a papai. Eu já escolhi o que quero.
E quando vejo você dizer 'eu quero', me encho de alegria por você saber exatamente o quer, já poder enxergar o que quer e pela certeza que me enche em saber que você terá. Pois eu sinto no seu 'quero' um 'queria' intenso. E eu vibro para que o seu 'quero' se realize.
Um ‘queria’ reflete um desejo profundo... Um ‘quero’ reflete uma convicção. Eu queria, querendo o que quero!
São Paulo, 25 de Janeiro de 2009.