TEMPO
Já tinha aquela paciência conhecida, que causava inveja as orientais de carteirinha. Já sabia a cartilha de trás pra frente, e mesmo assim continuava rezando e pagando o dízimo, como quem quita seus pecados. Já caminhava pela rua sem a maldita bengala masculina, que lhe arranjaram na década de 70. Já conseguia dizer a palavra não, sem que lhe caíssem os dentes, de tanta culpa. Já não menstruava todos os meses. Já tinha todos os livros que quisera, em sua cabeceira. Já não esperava o sorvete derreter para devora-lo. Já nem chorava a cada manhã difícil. Já sabia de soluções que antes não existiam. Já adoecera por toda primavera. Já sentia-se curada. Já escutava por horas a fio a ladainha de uma mulher abandonada. Já escrevera em muitos papéis de carta sem posta-las. Já desistira de entender um computador. Já tinha jogado merda em vários ventiladores. Já havia se perdoado muitas vezes. Já se acostumara com as rugas refletidas no espelho. Já se achava mais linda agora. Já nem ligava para os cabelos brancos. Já nem os escondia mais no meio de todas aquelas tintas. Já sabia cantar “Podres poderes”, sem usar uma cola. Já se aceitava desafinada. Já deixava as crianças andarem descalças. Já fazia vista grossa. Já desistira de ouvir a frase mais esperada. Já não guardava seu vestido mais bonito. Já sabia sua própria história. Já não precisava ser heroína dela. Já acendia um cigarro atrás do outro. Já não suportava toda aquela fumaça. Já debruçava sobre as próprias fotos. Já não se reconhecia nelas. Já possuía aquele sorriso de despedida. Já era adeus. Já era hora. JÁ!