NO DIVÃ DOS MEUS BOTÕES
Quando eu era bem pequeno, lembro que havia algo que simplesmente me aterrorizava: o estrondo dos foguetes e rojões.
Recordo que pouca gente compreendia aquele meu estranho gesto de correr para casa e me trancar no quarto sempre que se aproximava a meia-noite do Natal e Ano Novo.
Apesar da pouca idade, ali eu já me julgava homem o suficiente para sentir vergonha de admitir minha fobia, e assim, carregava em silêncio uma cruz que muito me torturava, com direito a todas as ridicularizações decorrentes.
Meus pais não me ajudavam muito a lidar com a questão. Na verdade, eles até achavam engraçado essa coisa de um garotinho se esvaindo em lágrimas e tremendo com as mãos coladas aos ouvidos, enquanto duravam os estampidos da meia-noite festiva.
Foi naquele exato momento que eu percebi que estaria sozinho nessa luta pela solução de meus problemas e na administração de meus medos, ao longo de toda vida.
Certa feita, perguntei a mim mesmo qual seria a pior coisa do mundo e se porventura em todo o universo existiria algo mais assustador que foguetes e rojões.
Foi então que me ocorreu numa daquelas intermináveis noites de insônia que havia um célebre monstro, mundialmente conhecido, narrado por escritores e retratato por cartunistas, a quem se atribuía o reino invencível de todos os temores infantis - O Bicho Papão!
O que poderia ser pior que aquele ser perverso, que impiedosamente devorava menininhos e menininhas que se recusavam a dormir cedo ou a comer todo o jantar? Nada, pensava eu. Mas devo confessar, eu ainda continuava com mais medo de foguetes e rojões!
Ainda bem que eu cresci e pude finalmente aproveitar minhas noites de Natal e Ano Novo sem ter mais que fugir para o quarto pouco antes da meia-noite.
Mas nem tudo são flores depois que se cresce. Na verdade, há muito mais espinhos que flores na vida adulta, pois me deparei com cenas muito mais aterradoras e traumatizantes. E a cada passo existencial, fui testemunhando episódios indignos, abjetos e hediondos, compondo as páginas de uma constatação que eu preferia não ter chegado acerca do mundo em que vivo!
Aqui nesse lugar, tempo e dimensão os vivos agridem sua própria vida, os poderosos são genocidas dos excluídos, os jovens exploram e maltratam os velhos, os adultos violentam os corpos e a inocência das crianças, os abastados negam pão aos famintos e mantém fora de seus portões tecnológicos o desespero voraz da base dessa injusta pirâmide, os comandantes se aliam à ilicitude moral e os comandados comem o pão do padecimento, a simplicidade se desvirtua para que a ganância se torne a grande "virtude" dos espertos!
Eis o tempo chegado em que a própria natureza se vê submetida aos estupros da ambição devastadora do homem e com seus sintomas apocalípticos tenta dar o seu recado de reprovação para com esse gênero corrompido e obstinado, que está sempre avistando os muitos quilômetros que lhe separam de seus lucros e nunca enxergam os poucos centímetros em que se acha sua própria destruição.
Há três décadas eu nem podia imaginar que haveria algo muito mais malévolo que o Bicho Papão e incomparavelmente mais aterrorizante que os foguetes e rojões. Hoje, porém, inexiste aquela época em que até o medo era mais romântico e a crueldade não galopava tão violentamente no coração desse ser que se diz humano.
Humano por destinação, porém demonizado por seus próprios monstros interiores, os quais não lhe permitem amar o próximo, sentir a dor do esquecido, unir seus bens à lacuna do miserável, verter de seus poros egocêntricos alguma gota de nobreza, sentir o mínimo de revolucionária indignação perante a decadência social que desfila pelas calçadas dos centros urbanos, ser capaz de contemplar no espelho algo que vá além de seu vulnerável rosto vaidoso, perdoar tropeços alheios que por vezes são menores que os seus próprios, repudiar a queda de outrem às custas de sua elevação, vencer a ilógica sensação de triunfo que a mentira e a traição costumam gerar, deixar de ser seu próprio deus para servir ao Único e Verdadeiro Deus!
Enfim, que me perdoem os meus botões por esse desabafo, mas odeio de tal forma o presente século, que quanto mais vejo o homem dessa geração, mas sinto saudades do Bicho Papão e dos foguetes barulhentos!