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Quem jamais vê uma estrela.

Nem recém-arrancada da sua árvore morde uma maçá.

Quem não cheirou o odor verdadeiro da fruta, de um morango, de alguma flor,

nem respirou o ar puro da montanha remota

nem ainda se banhou nas águas claras e refrescantes de aquele rio esquecido

nem passou diante da velha padaria à manhazinha e entrou após o recendente pão recém-saído do forno de lenha e o provou ainda queimando nas mãos, crepitando nos dentes.

Quem nunca percebeu o alento da terra molhada no ambiente após a tormenta

nem a sensação de se lançar sobre ervas muito altas, e perder-se, com a pele do torso ao ar mais os pés descalços.

Quem já não vê chover

nem deixa que o seu cabelo se molhe

pingando-lhe gotas de chuva pelo nariz

descer a água nuca para baixo

pelos pelinhos eriçados da espinha dorsal.

Quem jamais recebeu chuvas de afagos de um corpo nú

baixo o sol do verão

sobre a areia dalguma praia perdida

nem após se despir nadou entre borbulhas verdes na noite da lua plena

saiu do mar escuro e secou-se ao lume no que se assaram as sardinhas

quando as fogueiras de S. João.

Quem não salta sobre o palheiro

nem vai sobre o mulime no carro de vacas a olhar para os meninos que brincavam nas aldeias vizinhas e foram ficando atrás.

Quem não desapareceu jogando às escondidas trás os matorrais

nem foi às espigas e as assou às agachadas saboreando-as como nunca depois

nem roubou e estragou a fruta da vizinhança tendo a sua demasiado a mão.

Quem não viu a uma égoa parir

ao cavalinho tremente cambalear-se lutando para se pôr de imediato a pé depois de que o tenha lambido a mãe

nem a um boi cobrir

a um cão e a uma cadela ganir tentando se despegarem e sem compaixão a água fria do caldeiro em cima que os afastou.

Quem nunca pressentiu uns olhos espreitando quando atravessava um bosque sem farois

as pupilas ardentes da fera agaçapada no mato

a Santa Companha nas madrugadas intermináveis de volta das verbenas das aldeias remotas quando as festas do final dos verãos

quem não mentiu para chegar mais tarde

quem não chorou por um castigo

quem não se atreveu depois a pedir a sair

quem mais nunca se fez perguntas

quem nem se respondeu nem se cambaleia nem lembra de tudo aquilo que extraviara algum dia no velho desvão.

Quem nunca se perde já na sua cidade.

Nem ouve os antigos sons duns passos perdidos a ecoarem entre as pedras das suas ruas contando-lhe alguma velha história no Natal.

Quem já não se pára a escutar a música do violino entre o vaivém e o bulício

nem o silêncio de si.

Quem não pensa quem não sente quem não se arrepende nem perdoa nem se apieda nem se entristece

quem não que não

que não

irmá, irmão

quem não.