Alma carvoeira
Quanta compunção girava em torno das obrigações religiosas naqueles anos cinquenta, sessenta. As línguas de fogo então, pareciam abrasar os corações dos pobres pecadores, assinalando ser irremediável, irrecorrível a sentença.
Se não se contristasse, se confessasse, se arrependesse, babau, tava perdida a guerra contra o mal. A alma, que eu sempre imaginei em forma de pomba, de imaculada branquelice, com os pecados, ia ganhando pintinhas pretas, até não ter mais jeito e virar carvão. E eu já me olhava bastante respingado, de puro pecado, ainda que tão pouco tivesse ousado.
Ah, havia moleques que aprontavam mais que eu. E vai ver que nem sabiam da situação cromática de suas pombinhas...Até certas meninas, abusadas, de língua solta, claramente infringiam mais que eu.
Mas a cada um de se responsabilizar sobre o seu destino. Ainda que menino, reza o catecismo. E, no Lausperene, via eu a chance de me redimir, ir estar com o Divino nas horas mais recônditas, enquanto o mundo se mergulhava na devassidão dos carnais carnavais e outros tais, e eu ali, com a chance de falar direto praquela luzinha do Santíssimo, boiando no azeite, vermelhinha que podia salvar a almaminha.
Purificá-la, branquinha, de novo torná-la. Prontificava-me a ir lá na igreja justamente nas horas mortas, as mais difíceis, no frio da madrugadinha para fazer mais render o sacrifício e poder sentir mais de perto o aroma de santidade que emanava daquele refrigério.
E passava com uma lentidão assombrosa aquela hora de adoração, até que um cochilo mais forte, me indicava o rumo da própria sorte: a pombinha continuava a precisar sim de uma boa esfregada.