Oração vespertina

Ao cair a noitinha, a reza do terço era o que logo

vinha. Papai puxava as orações - depois de puxar pra

frente de si a cadeira de pernas em xis - compungido e

decidido. Era bonito até vê-lo ajoelhado, humilde e

esperançado, fazendo invocações introdutórias,

contemplando os mistérios (que podiam ser gozosos,

dolorosos ou gloriosos) e nos incitando, a seguir, e

pela ordem de idade, a tomar o fio da oração, com o

padre nosso, as dez ave-marias e o glória ao pai. Um

mistério sem mistérios, né? naquele ministério

doméstico da fé.

Os menorezinhos estavam poupados de acompanharem a reza

e podiam zanzar pela sala desde que observassem o

silêncio. Uma vez aprendido a rezar, aí já não havia

como recuar. Aí já se era aceito no rol dos oradores.

Esse noviciado dava-se por volta dos seis anos. E a

primeira reza, antes da primeira comunhão, se lhe

rivalizava no conteúdo e na forma da emoção.

Papai era craque na condução das rezas. Chegava até a

usar uma jaculatória em latim, em latim também por nós

respondida, da qual como memento só me resta um

fragmento, que nem sei se tá correto, mas só em

reproduzi-lo já me contento:

"...gloria festimo".

Tendo passado subsequentemente - e com que frequência

- por classes de latim, me surpreende que ainda não me

tenha aguçado o suficiente a curiosidade para

reconstituir essa quadra de recordação. Um dia, quem

sabe...Mas enquanto isso, oração que se preza, se reza.

Era raro haver uma perturbação, ou incidente que fosse

ao longo daqueles 20 minutos, iniciados ajoelhados,

seguidos sentados, e de volta, ajoelhados. Afinal,

telefone e tevê eram graças inalcançadas e o rádio, embora potente outrora, obedientemente, se desligava quase automaticamente.

Também, ouvido o toque de "O Guarani", quem iria ouvir

a Voz do Brasil com aquela chatice de aviso aos navegantes, bóia de

luz fraca...Luz, agora, era a luz da divina hora.

Como os horários de trabalho de papai e de mamãe se

alternavam, ela era menos conspícua nesses momentos.

Mas só em pessoa, nos nossos espíritos, ora, era a

Nossa Mamãe e Nossa Senhora. Talvez mais bonita. Mas será

que ela me acreditaria, logo ela também Maria?

Uma só vez, de que me lembre, houve um pequeno

desarranjo. E antes fosse intestinal, ao invés de

angelical. Foi quando, não sei por que cargas d'água,

e havia até umas duas ou três tias conosco, surgiu e

pegou logo a idéia de umas gracinhas: dar ênfase no

finalzinho da Santa-Maria, com um nada solene mas

insolente "...samorteamém", em coro, de Bebel, eu e Beu. Em coro acabou. E doeu. Mas só depois de terminada a reza e umas chineladas em muita popa que se preza.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 06/02/2015
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