ORAÇÃO DE SÃO JORGE
Eram duas as negras que moravam naquela encruzilhada, numa casa de pau-a-pique que explico para quem nunca viu: moradia retangular, sem varanda, construída com paus entrelaçados que recebem enchimento de barro e cobertura de duas aguadas com telhas moldadas nas coxas.
Elas viviam ali por posse e concessão, favor do fazendeiro.
Ganhavam a vida criando galinhas soltas no quintal.
Vendiam ovos e frangos, que ofereciam com o seguinte marketing: "olhe este frango... parece um bode"; "olhe este ovo... parece um ovo de bode".
Diziam ter nascido em "Minas" e tinham fala mansa e arrastada.
Completavam o orçamento doméstico benzendo e fazendo rezas.
Quando garoto, depois de caçar passarinho na região, eu parava ali, para beber, numa caneca de ágata quicada de tanto uso, água fresca tirada de um pote de argila que transpirava o tempo todo e era recoberto por musgo.
E, quando tinha "íngua", uma dor aguda na virilha, derivada do fato de andar descalço e levar picada de insento, eu corria para que elas me socorressem.
Então, pediam-me para andar e, enquanto uma delas esparramava cinzas na minha frente a outra fazia desenhos no chão, entre as minhas pernas, com o fio de uma tesoura aberta em cruz, orando:
"Cura com estas palavras:
se for dor, passa.
Se for bicho, morre.
Se for vento, saia.
Essa íngua diz que viva ela!
Mas eu digo morra ela!
E viva tu!
Que morra o mal
E viva a luz.
Com os poderes de Deus
e da Virgem Maria".
O diabo é que curava !
E disso eu me lembro bem !
Saía de lá, estilingue no pescoço, lépido e sem dor.
Pagamento? Só obrigado!
E ainda ganhava alguns afagos na cabeça e frutas retiradas do quintal.
Tias Pena.
O nome de cada uma?
Não guardei.
Mas recordo o canto monótono, como resmungo, que diziam, girando em torno de mim, uma compassada à outra, invocando meu Anjo da Guarda:
"Lá vem São Jorge, cavaleiro,
no seu cavalo branco amontado,
na nossa rua passou,
encontrou Nossa Senhora.
Nossa Senhora perguntou:
___ Onde vais, Jorge?
___ Vou nas minhas intendências, Nossa Senhora.
___ Não vais, Jorge, que nossos inimigos lá vêm.
___ Eu vou, Nossa Senhora, porque de mim não passarão.
Se eles tiverem olhos pra mim,
não me verão;
se tiverem mãos para mim,
não me pegarão;
se tiverem bocas para mim,
não me abocanharão;
se tiverem braços para mim,
não me levantarão;
se tiverem armas de ponta para mim,
hão de virar as pontas pelo cabo;
se tiverem arma de corte para mim,
hão de virar o corte pela cacunda;
se tiverem arma de fogo,
irão correr água dos ouvidos para a boca;
assim como a água corre pelo rio Jordão.
Entrei na casa de Abraão
com minha espada na mão,
para apaziguar Abraão, Adão e Noé,
assim como essas três palavras
amansou Abraão, Adão e Noé,
assim peço para apaziguar
o coração dos meus inimigos,
que eles hão de ficar
sempre mansos para mim
brandos e amigos,
como a sola dos meus pés.
Menino Jesus, Maria e José
Valha-me minha pessoa e ... "
E era o nome do meu pai no diminutivo que acrescentavam no final, apelido que delas recebi.
Isso se ficasse sentado o tempo que durava a reza, paciência que nem sempre eu tinha.
São Jorge, invocado pela prece, com armadura, lança e escudo, em luta contra o dragão, simboliza a força divina colocada a serviço do homem contra todos os males e perigos.
Não deviam ter cassado São Jorge; não deviam ter desaparecidos os benzedores.
Talvez por isso, os tempos andam tão bicudos e as crianças tão desprotegidas !
. . . . . . . . . .
Este conto foi inspirado num lindo texto da Ana Valéria Sessa que cita esta antiga oração.
13-02-2007
(Preciso praticar mais!...)