HOSPITAL: Templo de Orações
Eram seis horas de uma quinta-feira de manhã cinzenta.
Lá estava eu forte, saudável, ansiosa e tensa.
Era chegado o momento em que me submeteria a uma cirurgia plástica.
Fui entrando de mansinho, passos lentos, olhos indecisos, nervos abalados.A cada passo que dava, hospital adentro, sentia as pernas pesadas, trêmulas e resistentes em subir a rampa que dava acesso ao apartamento onde me instalaria por dois longos dias. As mãos suavam em bicas e discretamente enxugava-as na roupa que usava.O coração saltitante parecia até bater em ritmo de ensaio de escola de samba de tão alto e trepidante que se fazia dentro do meu peito. O desafio maior era demonstrar às pessoas que me acompanhavam uma força e tranqüilidade que, naqueles instantes, me faltavam.
Enquanto avançava pela rampa - um curto percurso - uma eternidade se passara. Olhava para os lados e via, como num filme, todos os fatos vivenciados ao longo de minha tênue vida.
Os transeuntes do corredor me olhavam curiosos. Deveriam estar se perguntando o que uma jovem aparentemente tão saudável estaria fazendo num hospital; talvez estivesse visitando alguém...
Já no quarto, a angústia começa: A primeira picada de uma injeção que sucederia tantas outras.As horas pareciam andar lentas.
Tudo se atrasara. O bloco cirúrgico ocupado por emergências e eu tendo que esperar um pouco mais. Então pensava: “ainda dá para desistir.
Eram, afinal, 11:30 quando me despedi das pessoas queridas que me acompanhavam, com um leve aceno, que mais parecia um pedido de oração e de socorro. No rosto dos que se punham detrás das vidraças um profundo medo, pálidos sorrisos e sentimentos embargados.
Enquanto a equipe médica se preparava, eu me punha em oração. Nunca me senti tão perto de Deus. Foi então que, entre lágrimas e preces, adormeci diante de um leve picar de uma fina agulha.
Foram seis horas em que minha mente se esqueceu do corpo e minha alma repousou entre o sonho e a realidade. Minha vida, então, encontrava-se a mercê dos homens de branco e, sobretudo do meu criador.
Às 19 horas acordei meio zonza, língua embolada, fala entorpecida. E, ao sentir as primeiras pulsações do meu coração, lembrei-me dos meus preciosos tesouros: Roberta e Murilo. Imediatamente veio a minha mente um gostoso refrão de uma historinha que costumava contar para eles, após o almoço ou ao se deitarem. A historinha falava sobre um passarinho que foi aprisionado por um garoto impiedoso e, conseguindo sobreviver, canta festivamente: “Eu sobrevivi João Jiló/ Sou bichinho do mato João Jiló/ Estou aqui para cantar João Jiló/ para piar...” Enfim, eu havia sobrevivido, graças à bondade divina e ao trabalho de toda a equipe médica.
Depois de algum tempo fui conduzida ao quarto e, naquele momento, não conseguia nem sequer sorrir para os meus afetos, pois a dor era muito intensa. Estava passando o efeito da anestesia e as dores só diminuíam diante de incessantes orações que eu fazia em silêncio.
A noite chegara e, com ela, uma sucessão de desconfortos e medos. Foi nessa hora que descobri que um hospital é, por excelência, um templo de orações. É lá que Deus tem presença viva. É por lá que ele anda: pelos corredores do enorme prédio e pelo pequeno labirinto dos corações humanos. Nos intervalos de uma oração e outra, perguntava-me se valeria a pena pagar um preço tão alto em nome do famigerado esteriótipo de beleza que a “sociedade da aparência” nos impõe. E me culpava por permitir uma agressão tão vil ao meu frágil corpo. Confesso que me senti feia por dentro. No entanto, percebi que talvez não fosse momento oportuno para tais reflexões, uma vez que essa idéia abalava meu espírito e comprometia minha recuperação. Então fechei os olhos e me pus, novamente, em oração. A fé era tão grande que cheguei a ter uma experiência maravilhosa! Vi, levitando sobre mim, uma pessoa toda coberta de flocos de neve e à medida que se aproximava do meu rosto me cobria com toda aquela neve de um branco reluzente. E, chegando bem próximo aos meus olhos, volveu a cabeça para um lado, para o outro e sorriu. Um bálsamo sorriso! Os olhos expressivos, brilhantes, a pele clara, quase transparente e um ar de candura emanavam daquele ser misterioso que não saberia dizer se era homem, mulher, ou simplesmente anjo. Após aquela imagem, as dores cessaram por completo e adormeci.
Quando acordei já era manhã, a claridade da janela parecia acariciar levemente o meu rosto como uma delicada mão a me despertar. Ao abrir os olhos, fiquei a meditar sobre o que, de fato, ocorrera naquela noite. A princípio, pensei ter tido um sonho, depois percebi que não. Não estava dormindo quando tudo aconteceu, estava em fervorosa oração. Aquela imagem povoou meus pensamentos durante todo o dia e os demais. Não comentei nada a ninguém por um bom tempo. Queria entender aquilo primeiro. Só mais tarde percebi que os humanos não possuem sabedoria suficiente para entender as coisas divinas. Por que eu tentaria?
Os dias foram passando e eu, a cada dia, me sentia melhor. Todo o procedimento cirúrgico fora um sucesso!O corpo ficara, mesmo, mais harmonioso e belo.
Hoje, concluo que valera a pena morrer um pouco para ter certeza de que Deus opera, sim, milagres na vida daqueles que crêem nele. Sinto-me mais leve, bonita, com autoestima elevada e um suave bem-estar acompanha o meu viver. No entanto, o que me faz querer viver tudo aquilo novamente é somente a lembrança viva daquele ser misterioso e angelical que me visitara naquela noite. Do contrário, não disponho mais de tanta coragem e/ou ousadia de viver tudo novamente.Valeu a experiência! Valeu mais ainda descobrir que, num hospital, apesar das frias paredes de azulejos brancos, dos gritos que ecoam pelos corredores cortando o silêncio da madrugada longa, do tilintar das seringas com seus líquidos analgizantes, do andar apressado dos enfermeiros, do esforço e dedicação estampados no agir de cada médico e de todo profissional que ali trabalha.Encontra-se um verdadeiro “Templo de Orações”, onde o criador se faz presente simultaneamente em todos os corações de suas amadas criaturas, onde sua presença é como som de uma valsa mediana ecoando entre o sofrimento e o alívio, a alegria e a tristeza, a esperança e o desalento, acolhidas e despedidas, presenças e ausências, fé e descrença... Vida e Morte!