Marta e Maria
A história do “povo de Deus” é longa, cheia de alegrias e tristezas, expectativas, dores, amarguras, esperança, vitórias e derrotas, fartura e miséria, angústia e ansiedade, mas é uma história de fé, muita fé. E essa fé é o combustível que move a caminhada desse povo – o antigo e o novo – ao longo dos últimos milhares de anos.
Santo Agostinho sempre nutriu um amor especial pela Igreja de Cristo. Para ele, a finalidade do cristianismo é preparar o homem para Deus. Agostinho é um dos pilares centrais dessa religião. Quando morreu deixou uma herança intelectual fabulosa no campo teológico que vem sendo estudada por todos esses séculos.
O famoso bispo de Hipona, como é conhecido, tem nos seus sermões e pregações o ponto alto de sua espiritualidade. Em Lucas 10, 38-42 temos o belíssimo texto sobre Marta e Maria, irmãs de Lazaro. E Agostinho usou essa passagem bíblica por diversas vezes em seus discursos com o objetivo de atingir os corações de forma certeira e provocar reflexões. O que há por trás desse famoso diálogo entre Jesus, Marta e Maria ?
O que nos chama a atenção são os versículos 40 – 42, quando Marta reclama para Jesus que Maria a deixa servir sozinha, não a ajuda. E a resposta de Jesus é profundamente significativa para Agostinho. Diz Jesus :
Marta, Marta estás ansiosa e afadigada com muitas coisas, mas uma só é necessária e Maria escolheu a boa parte, a qual não lhe será tirada.
Algumas interpretações entendem que Marta representa o antigo comprometimento com a Lei judaica, onde o cumprimento das obrigações falava mais alto. Enquanto Maria significa a aplicação da boa nova, os novos tempos. Para Origines, por exemplo, Maria pode representar a vida teórica e Marta a vida prática. Marta seria a imagem da sinagoga e Maria a imagem da Igreja (que surgiria em breve).
Agostinho vai mais longe e busca uma interpretação positiva para o desempenho das duas irmãs diante do Senhor. Para ele, Marta nos mostra o caminho ativo, o trabalho pastoral, de formiguinha, onde ficamos sempre ansiosos e cansados, pois temos que levar a Palavra do Senhor aos nossos irmãos, seja lá onde estiverem. Por outro lado, Maria nos mostra outro caminho de suma importância, a contemplação, a meditação, a reflexão.
São dois momentos distintos um do outro, mas altamente significativos. Enquanto o trabalho de Marta demanda o uso da palavra e das ações, o de Maria demanda o “saber ouvir”, aprender a escutar e depositar as Palavras de Jesus junto ao coração para depois poder praticar. Marta tem uma vida (cristã) ativa e Maria uma vida contemplativa. Primeiro, é preciso aprender, tomar conhecimento, ouvir, para depois, então, sair em campo para evangelizar, ensinar, divulgar, promover, festejar e louvar. “Se você não for capaz de ouvir, não construirá nada”.
Em um de seus discursos, Agostinho frisa que o cristão deve concentrar sua preocupação no “unum necessarium” que encontramos, exatamente, nas palavras de Jesus no versículo 42. Mas o que é esse “unum necessarium” ? Para ele, nada mais do que Deus em si mesmo. Pois Jesus deixa bem claro :
uma só coisa é necessária.
O foco está na unidade encontrada no Pai, no Filho e no Espírito Santo. Ele enfatiza e sedimenta a Trindade. Para ele, o uno é uma só realidade em três.
A diversidade que encontramos no Pai, Filho e Espírito Santo nos conduz à unicidade em Deus.
Agostinho entende que Marta e Maria simbolizam as duas vidas, a presente (daquela época) e a futura, depois da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo. Marta significa o caminho, a via e Maria o “finis”, o objetivo a ser alcançado. Marta representa a vida cheia de preocupações e anseios e Maria a vida de repouso fundada na beatitude.
Ainda hoje, Marta representa aquilo que somos e Maria aquilo que sabemos que deveríamos ser. Marta representa este mundo e Maria o “mundo vindouro” no Reino de Deus. Por isso, Jesus frisa que Maria ficou com a “melhor parte” a qual não lhe será tirada.
Entretanto, para não permitir que haja distorção na interpretação, Agostinho faz questão de deixar bem claro que não pode haver uma entrega exclusiva à contemplação e registra a importância e necessidade do “serviço cristão”, das atividades pastorais. Essas são interdependentes. Marta e Maria se completam. A vida cristã começa em Maria e termina em Marta. “O destino do cristão, neste mundo, é o destino de Marta : servir ao Senhor, pois Ele ainda precisa e muito dos serviços “dela” (nossos)”.
O bispo de Hipona afirma que tanto a ação em servir (Marta) quanto a contemplação (Maria) são vitais para o caminhar do cristão. Não é à-toa que o lema dos jesuítas é : “em tudo amar e servir” !
Leandro Cunha